23/09/2024
Por A.G. Sulzberger, para o Washington Post em O Globo (*)
Premier da Hungria, Viktor Orbán (E), e ex-presidente dos EUA, Donald Trump, na residência de Mar-a-Lago — Foto: AFP/Escritório do Primeiro-Ministro da Hungria/Miniszterelnöki Sajtóiroda
Depois de vários anos fora do poder, o ex-líder volta ao cargo com uma plataforma populista. Ele diz que a forma como a imprensa cobriu seu governo anterior lhe custou a reeleição. Para ele, o fato de ter tolerado a imprensa independente enfraqueceu sua capacidade de manipular a opinião pública. Desta vez, ele está decidido a não cometer o mesmo erro.
Seu país é uma democracia, então ele não pode simplesmente fechar jornais ou prender jornalistas. Em vez disso, começa a minar a imprensa independente de maneiras mais sutis, usando ferramentas burocráticas. Enquanto isso, recompensa veículos de notícias alinhados com a receita de publicidade estatal, isenções fiscais e outros subsídios governamentais, e ajuda amigos empresários a comprar outros veículos financeiramente enfraquecidos a preços baixos para transformá-los em porta-vozes do governo.
Essa é a versão resumida de como Viktor Orbán, o primeiro-ministro da Hungria, efetivamente desmantelou a imprensa em seu país — pilar central de um projeto mais amplo para torná-lo uma “democracia iliberal”. Uma imprensa enfraquecida tornou mais fácil para Orbán manter segredos, reescrever a realidade, minar rivais políticos, agir com impunidade e, em última análise, consolidar o seu poder sem controle. Essa é uma história que está se repetindo em democracias em erosão ao redor do mundo.
No último ano, me perguntaram com frequência cada vez maior se o New York Times, onde trabalho como editor, está preparado para a possibilidade de uma campanha semelhante contra a imprensa livre ser adotada nos Estados Unidos, apesar da orgulhosa tradição do país em reconhecer o papel essencial do jornalismo para uma democracia forte e um povo livre.
Não é uma pergunta absurda. Enquanto tentam voltar à Casa Branca, o ex-presidente Donald Trump e seus aliados declararam sua intenção de aumentar os ataques a uma imprensa que ele há muito tempo ridiculariza como “inimiga do povo”. Trump prometeu no ano passado:
Um assessor sênior de Trump, Kash Patel, tornou a ameaça ainda mais explícita:
— Nós iremos atrás de vocês, seja criminal ou civilmente.
Já há evidências de que Trump e sua equipe falam sério. No fim de seu primeiro mandato, a retórica anti-imprensa de Trump — que contribuiu para o aumento do sentimento anti-imprensa no país e em todo o mundo — foi discretamente transformada em ação.
Se Trump cumprir a promessa de continuar essa campanha em um segundo mandato, seus esforços provavelmente serão orientados por sua admiração aberta ao manual implacavelmente eficaz de autoritários como Orbán, com quem Trump se reuniu recentemente em Mar-a-Lago e elogiou como “um líder inteligente, forte e compassivo”.
O companheiro de chapa de Trump, o senador J.D. Vance, de Ohio, recentemente fez elogios parecidos a Orbán:
— Ele tomou algumas decisões inteligentes, com as quais poderíamos aprender nos Estados Unidos.
Um dos arquitetos intelectuais da agenda republicana, o presidente da Heritage Foundation, Kevin Roberts, afirmou que a Hungria de Orbán era “não apenas um modelo para a política conservadora, mas o modelo”. Sob fortes aplausos dos participantes de uma conferência política republicana realizada em Budapeste em 2022, o próprio Orbán deixou poucas dúvidas sobre o que seu modelo exige: “Caros amigos, precisamos ter nossa própria mídia.”
Esses novos aspirantes a autocratas desenvolveram um estilo mais sutil do que seus colegas de Estados totalitários, como Rússia, China e Arábia Saudita, que sistematicamente censuram, prendem ou matam jornalistas. Para aqueles que tentam minar o jornalismo independente nas democracias, os ataques normalmente exploram pontos fracos banais — e muitas vezes nominalmente legais — nos sistemas de governança de uma nação.
Esse manual geralmente tem cinco partes: criar um clima propício para a repressão à mídia, semeando a desconfiança pública no jornalismo independente e normalizando o assédio às pessoas que o produzem. Manipular a autoridade legal e regulatória para punir jornalistas e organizações de notícias que infrinjam as regras. Explorar os tribunais, na maioria das vezes na esfera civil, para impor penalidades logísticas e financeiras extras ao jornalismo que não lhe é favorável, mesmo em casos sem mérito legal. Aumentar a escala de ataques a jornalistas e seus empregadores, incentivando apoiadores poderosos em outras partes do setor público e privado a adotar versões dessas táticas. Usar as alavancas do poder não apenas para punir jornalistas independentes, mas também para recompensar aqueles que demonstram fidelidade à sua liderança — isso inclui ajudar os apoiadores do governo a obter o controle de organizações de notícias financeiramente enfraquecidas.
Como a lista deixa claro, esses líderes perceberam que as repressões à imprensa são mais eficazes quando são menos dramáticas — não como um filme de suspense, mas como um filme tão lento e complexo que ninguém quer assistir.
Mas esse consenso foi rompido. Um novo modelo está sendo elaborado com o objetivo de minar a capacidade dos jornalistas de coletar e reportar livremente as notícias. Vale a pena conhecer como é esse modelo em ação em outros países.
Em uma manhã de terça-feira em 2023, mais de uma dúzia de autoridades indianas invadiram as redações da BBC em Nova Délhi e Mumbai, dizendo a repórteres e editores assustados que se afastassem de seus computadores e entregassem seus celulares. Durante os três dias seguintes, os jornalistas foram impedidos de entrar no local, permitindo que o governo examinasse seus aparelhos eletrônicos e vasculhasse seus arquivos. Ainda mais surpreendente do que a batida em si foi o fato de que esses funcionários se identificaram não como agentes da lei, mas como auditores fiscais.
O sistema de imigração de um país é outra alavanca burocrática que pode ser usada para pressionar jornalistas. Na Índia, o governo Modi começou recentemente a impor regras de visto mais rígidas aos jornalistas e retirou dos repórteres estrangeiros o direito de permanecer no país.
Até mesmo as leis criadas para apoiar um ecossistema de informações saudável podem ser distorcidas. Na Hungria, o governo de Orbán manipulou as regras de privacidade digital da União Europeia para bloquear práticas comuns em reportagens investigativas, como o uso de bancos de dados públicos.
Os americanos podem estar acostumados a pensar nos tribunais como garantidores de direitos contra esses tipos de abusos e distorções das leis. Mas as lições do exterior nos lembram que o sistema judicial também pode ser mal utilizado para dificultar o trabalho dos jornalistas.
Na Índia, por exemplo, um respeitado jornalista da área finaceira passou os últimos sete anos no tribunal se defendendo de processos de difamação causados por suas reportagens sobre a suposta má conduta nas empresas de um multibilionário próximo a Modi. Em muitas redações, jornalistas afirmam que seus colegas evitam buscar e publicar histórias sobre pessoas poderosas por medo de represálias legais. Os processos judiciais contra a imprensa não precisam ser juridicamente sólidos para serem bem-sucedidos. Mesmo quando o caso fracassa, o custo e o estresse do litígio podem ser suficientes para silenciar um repórter ou incentivar outro a se autocensurar.
No Brasil, os frequentes abusos do sistema judicial pelo então presidente Jair Bolsonaro e seus aliados contra jornalistas foram apelidados de “assédio judicial”. Advogados entraram com ações perante juízes que eles sabiam ser céticos em relação à imprensa, sobrecarregando jornalistas com processos supérfluos para aumentar seus processos, além de abrirem queixas em vários tribunais distantes ao mesmo tempo, demandando defesas em várias frentes. O governador de um estado rural, aliado declarado de Bolsonaro, usou essas táticas para perseguir mais de uma dúzia de jornalistas locais por fazerem reportagens sobre ele, sua família e seus apoiadores políticos — muitas vezes solicitando também investigações criminais sobre suas alegações. A polícia batizou uma operação recente de “Operação Fake News”.
Todos esses esforços contra a imprensa se beneficiaram das sementes de desconfiança que os líderes plantaram contra o jornalismo independente. Hoje, a confiança na imprensa está em níveis historicamente baixos em grande parte do mundo — um declínio ajudado pela enxurrada de desinformação, teorias da conspiração, propaganda e clickbait liberados nas redes sociais.
Enquanto isso, os jornalistas confiáveis — cujo número já está diminuindo à medida que as organizações de notícias enfrentam dificuldades financeiras — enfrentam assédio e ameaças crescentes por relatarem verdades impopulares. A combinação de desconfiança do público, instituições enfraquecidas e assédio generalizado é uma fórmula para minar a reportagem independente.
Passaram-se apenas oito anos desde que Trump popularizou o termo “fake news” como um instrumento para atacar o jornalismo que o desafiava.
A expressão, dita pelo então presidente dos Estados Unidos, serviu como o incentivo que muitos aspirantes a autoritários precisavam. Nos anos seguintes, cerca de 70 países em seis continentes promulgaram leis sobre “notícias falsas”. Nominalmente destinadas a combater a desinformação, muitas delas servem principalmente para permitir que os governos punam o jornalismo independente. Por causa de algumas dessas leis, jornalistas enfrentaram multas, prisão e censura por reportar sobre um conflito separatista em Camarões, documentar redes de tráfico sexual no Camboja, narrar a pandemia de Covid-19 na Rússia e questionar a política econômica egípcia. Trump tem efetivamente defendido esse esforço, como fez quando disse a Bolsonaro em uma coletiva de imprensa conjunta:
É errado imaginar que esse é um problema exclusivo dos jornalistas. As repercussões de uma mídia enfraquecida reverberam por toda a sociedade, mascarando a corrupção, obscurecendo os riscos à saúde e à segurança pública, restringindo os direitos das minorias e distorcendo o processo eleitoral. A democracia em si, embora ainda intacta, é vista como mais tênue e condicional.
A imprensa livre foi concebida como um controle central contra o retrocesso democrático nos Estados Unidos. Mas não se engane, nenhum líder político americano gosta do escrutínio da mídia ou tem um histórico perfeito de liberdade de imprensa. Todos os presidentes desde a fundação do país reclamaram das perguntas incômodas dos repórteres que procuram manter o público informado. Mas mesmo com um histórico imperfeito, tanto presidentes republicanos quanto democratas, legisladores e juristas têm defendido consistentemente as proteções aos jornalistas. No último século, Trump se destaca por seus esforços contínuos para minar a imprensa livre.
No entanto, assim como na Hungria, no Brasil e na Índia, muitas das ameaças à liberdade de imprensa nos EUA provavelmente assumirão uma forma mais prosaica: um ambiente de assédio, litígio financeiramente punitivo e burocracia com o objetivo de diminuir ainda mais uma imprensa frágil por anos de crise financeira. Em 2016, refletindo sobre um processo de difamação fracassado contra um jornalista do New York Times uma década antes, Trump disse:
— Gastei alguns dólares em honorários advocatícios, e eles gastaram muito mais. Fiz isso para tornar sua vida miserável, o que me deixa feliz.
*A.G. Sulzberger é editor do New York Times