27/01/2022
Por Eliara Santana, jornalista e Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela PUC-MG, com especialização em Análise do Discurso. Atualmente desenvolve pesquisa sobre a desinfodemia no Brasil em interlocução com diferentes grupos de pesquisa. Publicado no GGN.
Instigada por vários comentários sobre a reportagem do jornal Folha Universal, da igreja do bispo Edir Macedo, eu procurei me inteirar mais sobre o conteúdo. Vi as falas de Michele, a casta, vi a reportagem da Revista Fórum, cheguei ao twitter de Flavio Costa e busquei o portal Folha Universal. Vasculhei bem e, enfim, devo dizer a vocês que fiquei surpreendida com o que vi no jornal: a linguagem é clara, o conteúdo é muito objetivo, o texto é bem escrito, há um jogo simbólico bem desenhado, com grau emotivo mas sem ser apelativo. Enfim, dá o recado.
Não estou convertida (ainda), fiquem tranquilos.
Mas acredito piamente que precisamos ver como eles dialogam, precisamos ver como esses formadores de opinião e disseminadores de desinformação comunicam; sobretudo, precisamos entender o funcionamento dessa interação entre o sistema midiático e o sistema religioso – isso é potente.
O jornal Folha Universal tem uma tiragem de 1 milhão e 700 mil exemplares. É uma tiragem enorme, muito maior que a de vários jornalões da mídia corporativa. A proposta gráfica evoluiu, está boa, e os textos são coerentes e bem escritos. Ou seja, há investimento em equipe e em comunicação.
Vou comentar aqui apenas essa construção “cristãos x esquerda”, ao melhor estilo “nós x eles” protagonizado por outros atores em tempos idos.
Há uma marcação precisa do espaço simbólico, com o lugar de cada um, com um bom jogo de cores; a esquerda vermelha (nada que a mídia corporativa nunca tenha feito rsrs) para detonar ira – categoria cara aos evangélicos. Do outro lado, o cristão em branco, em busca de paz, em busca do céu, aquele que faz tudo de bom.
Na construção do texto, esse uso de tópicos é um recurso muito bom porque enquadra o tema, encapsula aquela ideia principal e reforça o que se quer dizer. E os pontos elencados são muito bons, porque são categorias que compõem esse arcabouço moral que serve de suporte para a produção de fake news também. Além disso, não há mentiras absolutas na contraposição estabelecida – ou seja, há uma ressignificação de dados da realidade e que estão em plena discussão. Quais são os temas caros aos cristãos: família (é o começo de tudo), liberdade contra ditaduras disfarçadas de democracia (exemplo do Império Romano e da China), existência de Deus, estar do lado direito é estar num lugar especial, a união traz a verdadeira força (a esquerda prega a diferença). Cinco tópicos.
E eu reforço que não são tópicos puramente políticos – são temas caros ao universo da crença religiosa desse agrupamento evangélico, e são pontos bem trabalhados discursivamente no texto; são pontos que fazem sentido, que produzem sentido para a vida.
Por isso, antes de chamar todo evangélico de “gado”, é bom prestar atenção a esses sentidos que são construídos. E que têm impacto, não duvidem.
O comentário sobre a interface entre sistema midiático e religioso fica para a aula do Ciclo de Letramento Midiático.