Locomovendo-se em cadeira de rodas, o cineasta Sílvio Tender compareceu à 5ª Delegacia de Polícia, na Avenida Gomes Freire, atendendo a uma intimação expedida para sua casa na sexta-feira (14/12) pelo Delegado titular Alcides Pereira, a mando do Presidente do Clube Militar, General da reserva Renato César Tibau da Costa. O militar acusa Tendler de ter participado de uma manifestação promovida pelo Levante Popular da Juventude contra a solenidade comemorativa do golpe de abril de 1964 realizada no Clube Militar em 29 de março de 2012.
Acompanhado do médico Jorge Luiz do Amaral (Bigu), da enfermeira Ana Paula Borges, de seu advogado Carlos Eduardo C. M. Silva, do advogado Modesto da Silveira, dos representantes da OAB-RJ, Marcos Vinícius Cardoso, e da ABI, Mário Augusto Jakobskind, Sílvio Tendler iniciou o depoimento negando que tenha participado do ato contra o golpe de 64 promovido pelos oficiais ex-apoiadores da ditadura. Em tom irônico, ele lembrou do filme “Casablanca”, em que são convocados “suspeitos” para depor sobre uma ocorrência que nada tinha a ver e que estava sendo apurada. O cineasta acredita que os militares da reserva que apoiaram o regime ditatorial no País o consideram inimigo por ter realizado documentários bem aceitos pelos brasileiros sobre Juscelino Kubitschek (Anos JK) e João Goulart (Jango).
Comprovando que não poderia ter participado da manifestação, porque estava convalescendo em sua residência de uma grave cirurgia da medula, quando inclusive teve um infarto e quase morreu, Tendler revelou que desde dezembro do ano passado perdeu os movimentos e anda em cadeira de rodas.
Ele fez questão de que constasse em seu depoimento que os jovens participantes da manifestação estavam exercendo o direito democrático de protestar contra o golpe que levou o Brasil a viver uma longa noite escura de 21 anos. Muitos dos manifestantes eram familiares de vítimas mortais da ditadura. Lembrou Tendler, ainda, que os próprios militares que organizaram o ato ilegal de apoio ao golpe poderiam ter evitado o que aconteceu se preparassem o prédio para a entrada dos oficiais e convidados ao ato, entre os quais a ex-Secretária do Governo Carlos Lacerda Sandra Cavalcanti, e o jornalista Aristóteles Drumond, acusado pelo historiador Renée Dreyfus de ter fornecido armamentos ao grupo de extrema direita chileno Pátria e Liberdade nos meses que antecederam à derrubada do Presidente constitucional Salvador Allende. Entre os oficiais presentes à reunião no Clube Militar estavam Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do Doi-Codi de São Paulo no início dos anos 70, e Nilton Cerqueira, comandante da operação no sertão baiano que resultou na morte do Capitão Carlos Lamarca e seu companheiro Zequinha, quando não tinham condições de resistir ao cerco.
Sílvio Tendler revelou que pretende ingressar na Justiça com uma ação de danos morais pela acusação infundada, que lhe trouxe transtornos emocionais, afetando portanto a sua recuperação, e ainda pelo fato de ter sido chamado de “pato” pelo General Tibau da Costa. Para o cineasta a referência foi depreciativa e se relaciona com o fato de não poder andar. Para o advogado e Conselheiro da ABI Modesto da Silveira, o cineasta poderá processar quem lhe causa danos morais e materiais ao acusá-lo injustamente. Enquanto Silvio prestava depoimento, centenas de militantes de movimentos sociais, entre os quais o MST, a Une e jovens integrantes do Levante Popular da Juventude promoviam manifestação na entrada da Delegacia portando cartazes com os rostos de mortos e desaparecidos políticos do período ditatorial , entre os quais Rubens Paiva, Iara Iavelberg, Stuart Angel e Honestino Guimarães.
Em entrevista concedida na saída da Delegacia, Sílvio Tendler disse que “acha que conseguiu reverter a acusação. “Eles (os militares da reserva) me consideram presente no ato. Não fui não por falta de vontade, mas porque não podia sair. Me puseram presente jogando pedra. Consegui mostrar todas as mentiras. No processo, chamam de reunião um ato para comemorar o golpe de 64 desacatando determinação da Presidente da República de proibir esses atos. Aquela reunião estava coalhada de generais da reserva que devem obediência à Presidente da República.” Sílvio Tendler sugeriu ao Delegado Alcides Pereira que convoque para depor os militares que provocaram os manifestantes com gestos obscenos, como comprovam vídeos divulgados no Youtube.
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Carta-aberta
Antes do depoimento –, Sílvio Tendler divulgou carta aberta lembrando que sua mãe foi presa durante a ditadura. “Não só roubaram o relógio dela, como foi agredida, torturada, humilhada, nas dependências do Doi-Codi”. É esta a íntegra da carta aberta dirigida por Sílvio Tendler ao Delegado titular da 5ª Delegacia de Policia:
“Delegado,
Dois policiais vieram ontem à minha residência entregar intimação para prestar declarações a fim de apurar atos de “Constrangimento ilegal qualificado – Tentativa – Autor”, informa o ofício recebido. Meu advogado apurou tratar-se de denúncia ou queixa ou sei lá o quê, por parte do “presidente do clube militar” (em letra minúscula mesmo, de propósito). Informo que na data da manifestação, 29 de março de 2012, estava recém-operado, infelizmente impedido de participar de ato público contra uma reunião de sediciosos, os quais, contrariando a determinação da Exma. Sra. Presidenta da República, comemoravam o aniversário da tenebrosa ditadura, que torturou, matou, roubou e desapareceu com opositores do regime. Entre os presentes estava o matador do Grande Herói da Pátria, Capitão Carlos Lamarca, e seu companheiro Zequinha – doentes, esquálidos, sem força, encostados numa árvore. Zequinha e Lamarca foram fuzilados sem dó, nem piedade, quando a lei e a honra determinam colocá-los numa maca e levá-los para um hospital para prestar os primeiros socorros. Essa gente estava lá, não eu. Eles é que devem ser investigados. Eu farei um filme enaltecendo o Capitão Lamarca e seu bravo companheiro Zequinha.
Tenha certeza, Delegado, de que, enquanto eu tiver forças, me manifestarei contra o arbítrio e a violência das ditaduras e, já que o Sr. está conduzindo o inquérito, procure apurar se o canalha que prendeu, torturou e humilhou minha mãe nas dependências do Doi-Codi participou do “festim diabólico”. Isso sim é Constrangimento Ilegal. E já que se trata de assunto de polícia, aproveite para pedir ao “constrangedor ilegal” que ficou com o relógio da minha mãe – ela entrou com o relógio no Doi-Codi e saiu sem ele – que o devolva. Processe-o por “apropriação indébita, seguida de roubo qualificado (foi à mão bem armada)”. É fácil encontrar o meliante. Comece pelo Comandante do quartel da Barão de Mesquita em janeiro de 1971. Já que eles reabriram o assunto, o senhor pode desenterrar o processo. É, Delegado, o que eles fizeram durante a ditadura é mais assunto de polícia do que de política! Pergunte ao queixoso presidente do clube militar se ele tem alguma pista do paradeiro do Deputado Rubens Paiva. Terá sido crime cometido por algum participante da festa macabra, onde, comenta-se, havia vampiros fantasiados de pijama?
Tudo o que fiz foi um chamamento pelo Youtube convidando as pessoas a se manifestarem contra as comemorações do golpe de 64. Se este general entendesse ou respeitasse a lei, não teria promovido a festa e, tendo algo contra mim, deveria tentar me enquadrar por “delito de opinião” mas aí, na fotografia, ele ficaria mais feio do que é, não é mesmo? Por fim, quero manifestar minha solidariedade aos que protestaram contra o “festim diabólico” e foram tratados de forma truculenta, à base de gás de efeito moral, spray de pimenta e choque elétrico – como nos velhos tempos. Bastaria umas poucas grades para separar os manifestantes do povo, que estavam na rua, aos sediciosos que ingressavam no clube. A muitos poderia causar a impressão de estar visitando um zoológico e assistindo a um desfile de símios. Não perca tempo comigo e com a ranhetice de um bando de aposentados cri-cri, aporrinhando a paciência de quem tem mais o que fazer. Pura nostalgia da ditadura, eles se portam como se ainda estivessem em posição de mando.
Atenciosamente,
Sílvio Tendler.”