06/04/2023
Por Oscar Pilagallo, em Folha de São Paulo
Homem de convicções de esquerda, simpático ao trotskismo, Cláudio Abramo (1923-1987) foi um dos grandes responsáveis, talvez o maior, pela renovação radical do que ele, formado intelectualmente no marxismo, chamava de imprensa burguesa. O centenário de nascimento de Abramo se comemora nesta quinta-feira (6).
O contraste entre o ideal político e a prática profissional não avança para o campo da contradição porque é baseado, com pragmatismo, na sua compreensão de que “a regra do jogo” deveria ser sempre respeitada.
Referia-se ao respeito aos princípios doutrinários dos jornais, ditados pelo capitalismo. Ao oferecer um fio condutor à sua intensa e turbulenta trajetória, a expressão entre aspas dá título ao seu livro póstumo de memórias.
A fama e a estampa precediam o jornalista. Era alto, bonito, com gesticulação graciosa, parecia um fidalgo florentino, na descrição de Paulo Francis, que o considerava um irmão mais velho. Fidalgo sarcástico e encrenqueiro, acrescentaria Mario Sergio Conti, colunista da Folha, em “Notícias do Planalto”.
Era ainda, reconhecidamente, autoritário, explosivo e idiossincrático. Abramo era tudo isso, sim, mas era sobretudo inteligente, como ambos destacam.
Tais atributos lhe renderam discípulos e desafetos nos veículos por onde passou, principalmente em O Estado de S. Paulo e nesta Folha, jornais em que sua presença foi determinante para colocar em pé reformas editoriais, cujas bases, incorporadas em projetos posteriores, vêm resistindo ao tempo.
Com pouca escolaridade, Abramo foi um autodidata que se formou como humanista lendo, no original, clássicos da literatura mundial e obras que pregavam a revolução socialista, disponíveis em sua casa.
Dominando o italiano, o inglês e o francês, começou no jornalismo trabalhando na propaganda aliada durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), antes de ser contratado pelo Estadão, em 1948.
Depois de quatro anos atuando como repórter e redator, assume a direção da Redação e dá início à reforma do jornal. Entre outras medidas, zela pelo maior equilíbrio do noticiário, adota práticas modernas de controle de produção e antecipa o fechamento da edição em três horas, para meia-noite.
Também passa a contratar universitários de outras áreas, transformando-os em jornalistas talentosos, que elevam o nível intelectual do matutino.
Não consegue convencer os proprietários a publicar na capa notícias sobre o Brasil. Lá, só entravam informações sobre política internacional, algo que o jornalista atribuía ao “colonialismo recôndito” de quem detinha o poder de decisão. Mas ele contorna a situação ao criar a Última Página, centrada em assuntos brasileiros, “que imediatamente se transformou na página número um”.
Também não interfere nos editoriais, que classificava de “medievais” ou “antediluvianos”, por defenderem os interesses da classe dominante paulista e brasileira, nessa ordem. Mas nessa seara não havia o que fazer –era a regra do jogo.
O afastamento de Abramo de O Estado de S. Paulo se deu quando, a partir de 1962, a família Mesquita, dona do jornal, se aproximou de militares e civis que arquitetavam um golpe contra o presidente João Goulart.
Houve pressão contra ele, de oficiais do Exército que participavam da conspiração, e, em julho de 1963, Abramo pediu demissão.
No dia seguinte, apresentado por um amigo em comum, conheceu Octavio Frias de Oliveira, que havia menos de um ano comprara a Folha em sociedade.
A conversa não prosperou, e na sequência Abramo, numa passagem breve de sua biografia, assumiu a assessoria de Carvalho Pinto, ministro da Fazenda, uma voz conservadora no governo Jango, que não resistiria no cargo até o fim daquele ano.
Na mesma época, o jornalista foi contratado, com “o maior salário da imprensa brasileira”, para reformar o inexpressivo tabloide A Nação. Mas julgou-o além da possibilidade de salvação. Demitiu quase toda a Redação, de 200 jornalistas, e fechou o jornal em janeiro de 1964, pouco antes do golpe.
Desempregado e sem perspectiva de trabalho, foi procurado de novo por Frias no segundo semestre daquele ano. Passou a produzir análises diárias sobre a Folha, mas sem aparecer no jornal.
No início do ano seguinte, assumiu a função de chefe da produção e foi recebido por um abaixo-assinado da Redação, liderado por chefias contrárias à sua contratação.
Abramo se impôs, mas nos primeiros anos pouco foi feito –a empresa, mais preocupada em obter estabilidade financeira e liquidar dívidas, não investia na Redação.
Jornal à época sem relevância, a Folha passaria na virada para os anos 70 por um período que Abramo considerou sombrio. “O jornal não tinha condições de resistir a pressões do governo e, por isso, não provocava”, anotou em suas memórias. Descontente com a estreita margem de manobra, acabou afastado da direção em 1972.
Até o início de 1974, Abramo continuava, em suas palavras, “encostado na Folha”, quando surgiu a oportunidade para uma guinada editorial.
Na ocasião, Frias decidiu apostar na abertura política vislumbrada pelo futuro presidente, Ernesto Geisel, e direcionou o jornal para ocupar o lugar de um representante da sociedade civil nesse processo, a partir do ano seguinte.
Para Otavio Frias Filho (1957-2018), que se tornaria diretor de Redação dez anos mais tarde, um dos fatores que contribuíram para o êxito do projeto foi a presença de Abramo, a “pessoa certa” para executá-lo.
Com seu prestígio, ele contratou profissionais de projeção, como Francis e Alberto Dines, e atraiu intelectuais de várias correntes ideológicas, que passaram a colaborar nas recém-criadas páginas de opinião, cujos espírito e plasticidade estão preservados, na essência, quase meio século depois.
A carreira de Abramo como diretor de Redação foi interrompida abruptamente em 1977, quando ele foi pego no meio do fogo cruzado de uma disputa de poder em Brasília.
Um cronista do jornal, Lourenço Diaféria, foi preso após publicar um texto debochando do Duque de Caxias, patrono do Exército. Em protesto, a Folha publicou sua coluna em branco, numa decisão em que Abramo foi voto vencido.
A ala dura do governo, que se opunha à distensão política, pressionou o jornal, e Abramo –que fora preso em 1975, acusado de subversão– foi afastado do cargo. Menos de um mês depois, o ministro do Exército, Sylvio Frota, pivô da crise, foi demitido por Geisel.
Substituído por Boris Casoy, que deu continuidade à sua gestão, Abramo permaneceu na Folha, redigindo editoriais e como membro do Conselho Editorial. Na greve dos jornalistas de 1979, entrou no prédio do jornal, mas não trabalhou, desagradando aos dois lados.
Em seguida, deixou a Folha para fazer o Jornal da República, que durou apenas cinco meses, quando também esteve à frente da Leia Livros, publicação criada em sociedade com a editora Brasiliense em 1978.
Com o fim do Jornal da República, Abramo voltou para a Folha, primeiro para atuar como correspondente em Londres e Paris e, a partir de 1984, como titular de uma influente coluna diária de opinião, que escreveria até morrer, em 1987, aos 64 anos.
Desiludido com o cenário político, marcado por uma redemocratização ainda inconclusa, e com o jornalismo, onde acreditava não dispor de espaço compatível com sua importância, Abramo deu vazão à amargura, contrabalançada por reflexões que ajudaram gerações posteriores de jornalistas a entender a dimensão pública da profissão.
“Não existe uma ética específica do jornalista; sua ética é a mesma do cidadão”, ensinou. Disse também não existir um jornalismo objetivo, mas vários, sendo obrigação do jornalista descobrir o que é considerado objetivo na empresa em que trabalha.
De sua máquina de escrever saiu ainda a definição de jornalismo como o exercício cotidiano de inteligência e caráter –essa a regra de Cláudio Abramo.