Cinemateca brasileira,
agonia e resistência


14/07/2020


Imagem: Jornal Zona Sul de São Paulo

CINEMATECA BRASILEIRA, AGONIA E RESISTÊNCIA

por Norma Couri, titular da diretoria Mulher & Diversidade da ABI

O filme mudo no telão competia com a lua cheia num daqueles momentos de felicidade azeitada pelo som do piano como acontecia muito antigamente. Era mais uma sessão da Cinemateca Brasileira ao ar livre, ali onde mora o prazer do paulistano, cinéfilo ou não, acostumado a se nutrir de raridades do cinema russo, chinês, neo zelandês, albanês, europeu… As Mostras não poderiam ser vistas em nenhum outro lugar. Eram exibidas para o público cativo, sempre seguido de palestras memoráveis de diretores ou atores como Ricardo Darin. Isso era cinema. Mas nada comparável com o maior acervo cinematográfico da América Latina que suas salas guardavam para o futuro.

O clássico Limite de Mário Peixoto em 1931, tão importante que sua restauração contou com a colaboração da World Cinema Foundation criada por Martin Scorcese. Ganga Bruta de Humberto Mauro realizado em 1933, chanchadas de Oscarito, Zé Trindade e Grande Otelo e todo acervo da Atlântida dos anos 50, O Cangaceiro de 1953 que levou o premio de melhor filme de aventura no Festival de Cannes. O Cinema Novo com o arquivo de mais de dois mil documentos de Glauber Rocha. O primeiro jornal televisivo exibido no Brasil pela TV Tupi e a jóia da cinematografia e do esporte brasileiro  com registros de Pelé e Garrincha que foi o memorável Canal 100 de Carlinhos Niemeyer antecedendo as sessões.

E não só. Um milhão de documentos raros, cartazes, fotografias, cartas, artigos, matérias, um centro de pesquisa primoroso, registros únicos, 250 mil rolos de filmes contendo 44 mil títulos de curtas, média e longa metragem. O antigo abatedouro municipal construído em 1887 foi cedido para a Cinemateca por Janio Quadros em 1988 depois de muitas investidas de Rudá de Andrade, filho de Oswald de Andrade.  Rudá tentava dar uma sede para a preciosidade em celulose que vinha sendo transferida de prédio em prédio, de cineclube em cineclube por sete vezes. Isso desde suas origens em 1940, depois incorporado ao Museu de Arte Moderna quando o prédio ainda era na rua 7 de Abril. Com projetos desde 1956 acalentados por figuras como o crítico Paulo Emílio Salles Gomes, a Cinemate ca Brasi leira instalou-se no abatedouro.

O roteiro da administração desse tesouro é de um filme de horror. Em 2018, passou a ser gerida pela Fundação Roquete Pinto, uma organização social que concorreu à seleção apresentada ao então Ministério da Cultura.  A Roquete Pinto já administrava para o governo a TV Escola. Nesse meio tempo o Ministério da Cultura virou Secretaria incorporada primeiro à pasta da Cidadania, agora ao Ministério do Turismo. O ministro fugitivo Abraham Weintraub encerrou o contrato com a TV Escola e provocou um colapso financeiro na Instituição. Desde então discute-se se um contrato estava ligado ao outro e o governo deixou de repassar R$ 11 milhões para suprir o orçamento de R$ 13 milhões anuais da Cinemateca.

Regina Duarte afirmou numa live que recebeu “um presente”, chefiar a Cinemateca. Mas a cadeira está ocupada por Roberto Barbeiro pela Roquete Pinto. Barbeiro acumulava a direção da Cinemateca com o cargo de assessor parlamentar no gabinete da deputada estadual Edna Macedo do PRB, irmã de Edir Macedo da Igreja Universal do Reino de Deus. Acabou exonerado porque a Assembléia Legislativa não admitia acúmulo com cargos públicos. Há dúvidas se o gestor de fato é o assessor especial da Roquete Pinto, Rodrigo Morais, secretário geral do PSL próximo do deputado federal Eduardo Bolsonaro. Foi, inclusive, assessor do ex-ministro da Educação, o colombiano Ricardo Vélez, que queria as crianças das escolas públicas em formação mili tar com gestos integralistas de anauê. Por isso Morais em vídeo disse pretender introduzir projetos de visitas à escola e educação para o cinema.

O presente de Regina é um cargo que não existe. A Cinemateca deixou de ter qualquer cargo público desde 2018, eliminada do organograma do então Ministério da Cultura, como explica Carlos Augusto Calil, ex-diretor do órgão. Para que exista, a Cinemateca deverá retornar à gestão do governo. Ou tudo se trata de um blefe que desemboca no mesmo limbo em que se encontra  a Cultura e a Educação do país.

Já se ouviu que a Cinemateca será fechada até o final do ano, que Regina vai devolver o presente, que os funcionários, alguns com 40 anos de casa, serão substituídos por comissionados do Ministério do Turismo como a diretora que assumiu o Patrimônio Histórico Brasileiro, blogueira sem curso superior, formada em Turismo, mulher de um ex-Segurança de Bolsonaro.

A Sociedade Amigos da Cinemateca supria o desastre financeiro da instituição desde 2013, captando recursos por conta própria, o que salvou vários rolos , restauros de filmes e recuperação do prédio de tijolinhos. Conseguia assim girar R$ 30 milhões anuais. A Cinemateca começou a morrer quando a ministra Marta Suplicy impediu a captação de recursos que minguaram. Cinco anos depois o ministro Sergio Sá Leitão extinguiu o Conselho Consultivo e transferiu a gestão para a Roquete Pinto.

A barafunda assusta as Cinematecas do mundo sempre ligadas à Brasileira na troca de acervos. Como a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio , por exemplo, que mantinha um intercâmbio desde a ditadura, por medo de que os militares queimassem tudo – uma tinha a cópia de todos os filmes da outra, por garantia. A Cinemateca era um centro de resistência. Rudá contou que o Dops vivia atrás do fichário que mantinham e, por segurança, queimaram na época 2 mil nomes e endereços.

Por isso o susto aumentou com o soar de coturnos no templo dos cinéfilos quando em setembro do ano passado a Cinemateca foi ocupada por militares e políticos conservadores militando contra o “marxismo cultural”. Militares fardados começaram a discutir a programação. Políticos conservadores programavam eventos. O capitão da reserva do Exército e deputado estadual do PSL, Castelo Branco, gravou um vídeo ao lado do colega de farda Lamartine Holanda para anunciar um ciclo de filmes militares. Mencionou a participação da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra.

Uma coisa é a Mostra militar ideológica, outra, a série de Eduardo Escorel Imagens do Estado Novo – 1937-1945, de 2016, que buscou imagens também na Cinemateca, como Tais Constantino Blank fez para o seu livro Cinema Doméstico Brasileiro (1920-1965) pela Appris Editora.

Após quatro incêndios, uma enchente, autocombustão de filmes com base de nitrato de celulose, contas de luz penduradas impedindo a refrigeração e salários atrasados, a Cinemateca sobrevive enquanto caminha para o abismo.

Semana passada foi demitido Heber Trigueiro, secretário nacional do Audiovisual, responsável pela Cinemateca. O ex-ator de Malhação e atual secretário de Cultura, Mario Frias, ainda não colocou substituto. O risco iminente da falência diante da negligência e abandono reuniu os amantes da cultura cinematográfica e guardiões da memória do país, como a mulher de Paulo Emilio Salles Gomes, Lygia Fagundes Telles, os cineastas Walter Salles, Fernando Meirelles, Walter Lima Jr., Marina Person, Tizuka Yamazaki e os teóricos Ismail Xavier, Jean-Claude Bernadet , entre outros.

O movimento SOS Cinemateca é organizado pelo cineasta Roberto Gervitz e já organizou mês passado um ato público e um manifesto endossado por 70 associações como os Festivais de Berlim e Cannes.

A Cinemateca não pode morrer.

O manifesto hoje dia 14/7 é em frente à sede, no Largo Sen. Raul Cardoso, Vila Clementino, São Paulo, das 16 às 19 horas