Uma gravata no fascismo


24/04/2023


Foto: REUTERS/Rodrigo Antunes

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, entregaram o Prêmio Camões, o principal da literatura em língua portuguesa, ao músico, dramaturgo e escritor brasileiro Chico Buarque. A cerimônia ocorreu nesta segunda-feira (24), no Palácio Queluz, em Lisboa.

Por Maria Luiza Busse, diretora de Cultura da ABI

Em Portugal, a cerimônia de entrega do prêmio Camões a Chico Buarque significou a retomada do marco civilizatório da Cultura no Brasil. Na Sala do trono do Palácio Nacional de Queluz, a 15 kms de Lisboa, o presidente português, Marcelo Rebelo buscou na composição Meu Caro Amigo, do homenageado, o modo de se desculpar pelo obscurantismo alheio. “Meu caro amigo me perdoe essa demora”. Chico foi indicado em 2019 por decisão unânime dos seis membros do júri mas o fascista que governava o país se recusou a assinar o mérito cultural. O Camões é uma concessão conjunta de Brasil e Portugal, aprovada em 1988, e precisa da assinatura dos respectivos governos para ser outorgado. Na ocasião, Chico Buarque respondeu que “a não assinatura de Bolsonaro no diploma é para mim um segundo Premio Camões”. Na fala e na escrita, Chico Buarque é sempre um poeta, um lírico no curso do capitalismo.

Em 1974, Chico ensaiou na literatura com ‘Fazenda Modelo’ e chega hoje com oito romances e quatro peças também editadas. O presidente do júri, Manoel Marins, lembrou ‘Chapeuzinho Amarelo’, o único livro infantil de Chico e destacou a criatividade inventiva da literatura e da dramaturgia que têm a música como elo de ligação. O presidente Lula, embarcou na ficção. Inspirado, fabulou que quando criança queria ser tudo o que o artista é. A mãe disse que não seria possível porque dois anos antes já havia nascido um menino desse jeito. Mas que ele, Lula, se prepare-se porque seu destino era ser presidente da República. O público formado de artistas, políticos e amigos, de Fafa de Belém a Renan Calheiros, Maria Marighella e Hélio Doyle, respectivos presidentes da Funarte e da Empresa Brasil de Comunicação, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, e ministros da comitiva oficial, gostou da prosa presidencial.

Chico Buarque recebeu o Camões com sabor de “desagravo, a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos”. Fez comovente elogio ao pai, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, um dos intelectuais de referência nos estudos da formação brasileira, e revelou a causa de estar muito emocionado naquele momento: “Minha mulher, Carol, hoje de manhã ela saiu, atravessou a rua e foi comprar essa gravata para mim”.
Era mais um desagravo. Nas vésperas, Janja, a primeira dama, comprou uma gravata para o marido numa loja a vinte metros do hotel em que o casal estava hospedado em Lisboa. Cuidadosa, queria nos trinques o companheiro representante de uma nação inteira, gente que sempre carrega junto nas suas falas pelo mundo. Foi o bastante para os conservadores do reacionarismo acionarem o projeto que polui mentes e envenena os corações. Partiram para o ataque com a convencional barulheira de intrigas, mas o marido mais uma vez fez bonito como manda o figurino e a gravata de Janja acabou por fazer com que perdessem o fôlego. Ainda no discurso, Chico advertiu ser necessário seguir atento porque a “ameaça fascista persiste”.

Dentre os convidados, estava Vasco Lourenço, o capitão de Abril que participou da Revolução dos Cravos que no 25 de Abril de 1974 libertou Portugal do fascismo que governou o país por 48 anos. Dias antes, em entrevista ao programa especial ABI Cultura em debate, disponível no canal YouTube da Associação Brasileira de Imprensa, Vasco Lourenço disse para que servem os militares. Aos 81 anos, reafirmou que “o sonho é o que comanda a vida”. O mesmo que Chico Buarque cantou em Tanto Mar há quase cinquenta anos, em um Brasil mergulhado em uma ditadura que durou 21 anos. Mas como dizem os poetas, com toda a razão, o sonho nunca acaba e não há longa noite que não encontre o dia.

Íntegra do discurso de Chico Buarque na entrega do Prêmio Camões

Ao receber este prêmio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária. Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade. Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.

O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco. Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de  tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me em casa e esmero-me nas colocações pronominais. Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.

Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de prêmio Camões. De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde – sou leitor e admirador. Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim. 

Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.
 
 Muito obrigado