15/08/2008
O poeta, folclorista, pintor, ator e teatrólogo Solano Trindade (1908-1974), que completaria cem anos em 24 de julho, era um homem surpreendente. Por meio de sua obra, foi um dos precursores da chamada consciência negra e de um olhar referencial sobre a camada social menos favorecida, que tão bem decantou em seus versos e encenou em peças teatrais.
Seus poemas são a expressão da vitalidade e a consciência política do artista, que permanece viva em “Água do rio e o calor do sol”: “A vida é um grande monumental poema/ minha luta são estrofes/ são versos neste grande monumental poema (…)”. Ou nas palavras que escreveu para filha Raquel: “Estou conservado no ritmo do meu povo/ Me tornei cantiga determinadamente/ e nunca terei tempo para morrer.”
O centenário deste pernambucano, nascido na Rua do Nogueira, no bairro pobre de São José, em Recife, está sendo lembrado com uma programação extensa — principalmente em Embu, São Paulo, onde viveu entre os anos 60 e 70 —, que inclui exposições, espetáculos teatrais e musicais e relançamento de livros.
As homenagens começaram já no ano passado, quando Solano foi condecorado, post-mortem, na categoria Gran Cruz, com a Ordem do Mérito Cultural 2007 — a mais alta comenda do Governo brasileiro a personalidades e instituições pelo desenvolvimento da cultura nacional —, entregue pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva à sua filha Raquel, artista plástica e folclorista, em cerimônia realizada no Palácio das Artes, em Belo Horizonte-MG.
Na época, o ator Sérgio Mamberti — então Secretário da Identidade e Diversidade Cultural do MinC — justificou a comenda com o seguinte comentário: “Solano Trindade era uma pessoa fantástica, um incansável batalhador da cultura popular brasileira.”
Poeta do povo
O livro “O poeta do povo”, lançado pela Ediouro, é uma homenagem póstuma dos filhos Raquel Trindade Souza, Godiva Solano Trindade da Rocha e Liberto Solano Trindade. A publicação traz dados biográficos e reúne quatro cadernos de poesia selecionados de “Poemas d’uma vida simples”, “Seis tempos de poesia” e “Cantares ao meu povo”, publicados entre 1944 e 1953. No caderno “Poemas sobre o negro”, os versos remetem o leitor à saga do povo africano no Brasil, à influência religiosa no culto ao candomblé e à figura do líder Zumbi dos Palmares.
O caderno “Poemas de cunho político-social” reúne os versos em defesa da igualdade social e racial, com destaque para as poesias “Também sou amigo da América”, “Advertência” e “Tem gente com fome”, um dos seus poemas mais famosos e que lhe rendeu a primeira prisão política. Os versos foram musicados pelo grupo Secos & Molhados e censurados pelo regime militar — bem mais tarde, Ney Matogrosso gravou: “Trem sujo da Leopoldina/ Correndo, correndo,/ Parece dizer:/ Tem gente com fome/ Tem gente com fome/ Tem gente com fome…/ Mas o freio de ar/ Todo autoritário,/ Manda o trem calar:/ Psiuuuuu (…).”
“Poemas de amor”, como sugere o título, mostra o lado lírico de Solano, em versos criados para exaltar a beleza da mulher negra e o comportamento alegre característico dos afrodescendentes. Já “Poemas sobre a vida do poeta” é dedicado aos versos nostálgicos sobre a infância, a família, o ambiente nordestino, com cenas das festas populares das cidades em que o autor viveu, como “Interrogação”, seu último poema, escrito em 1969, na cidade de Embu.
Os poemas de Solano Trindade foram também reeditados pela Nova Alexandria, nos livros “Poemas antológicos” e “Tem gente com fome”. O primeiro foi subdividido em quatro seções — ‘Vida, nossa vida’, ‘Deuses e raízes’, ‘Amor à flor da pele’ e ‘Resistência e luta’ — e ilustrado por Raquel Trindade. O segundo acabou se tornando um livro infanto-juvenil, com ilustrações de Murilo Silva e Cintia Viana.
Militância
Solano Trindade foi também diretor da União Brasileira de Escritores (Ube) e um dos mais importantes defensores da cultura afro-brasileira:
— Sua poesia é de um engajamento que o põe na qualidade de um dos mais expressivos poetas negros do Brasil. Ele foi um militante de primeira hora — diz o escritor, jornalista e crítico literário Uelinton Farias Alves, autor de “Solano Trindade — Tem gente com fome e outras poesias” (1988).
O poeta era filho do sapateiro Manoel Abílio e de Emerenciana Quituteira e fala da família no “Poema autobiográfico”: “Quando eu nasci/ meu pai batia sola,/ minha mana pisava milho no pilão,/ para os angus das manhãs (…)./ Portanto, eu venho da massa, eu sou um trabalhador (…).”
Os primeiros versos foram escritos nos tempos do Colégio Presbiteriano XV de Novembro, em Garanhuns-PE, mas ainda eram “textos místicos, publicados na revista escolar”, segundo o historiador Emmanuel de Macedo Soares. No entanto, não demorou para ele perceber que os pobres e os negros recebiam tratamento diferenciado até mesmo por parte das entidades religiosas da época. Assim, abandonou a diaconia e começou a traçar caminho próprio, em que o misticismo “cedeu lugar a um sentimento de afirmação da própria raça, bandeira de luta em peregrinações futuras pela Bahia, Minas, São Paulo e Rio Grande do Sul”, conta Emmanuel.
Lançado na década de 1930, “Poemas negros” foi seu primeiro movimento no sentido contrário do descaso da classe dominante em relação aos problemas étnico-sociais que se transformaram em objeto de estudo de alguns intelectuais brasileiros, entre os quais o sociólogo Gilberto Freire, com “Casa grande & senzala”.
Nos anos de 1934 e 1935, Solano participou ativamente dos I e II Congressos Afro-Brasileiro, respectivamente em Recife e Salvador. Em 1936, fundou a Frente Negra Pernambucana, reafirmando a defesa pela igualdade no Brasil: “Não faremos lutas de raça, porém ensinaremos aos irmãos negros que não há raça superior nem inferior, e o que faz distinguir uns dos outros é o desenvolvimento cultural. São anseios legítimos a que ninguém de boa-fé poderá recusar cooperação”, diz o manifesto da entidade. Também em 36, criou o Centro de Cultura Afro-Brasileira. E começou os anos 40 viajando pelo País, para falar de cultura popular e consciência negra.
Solano Trindade e a filha Raquel TD> |
Aprendizado
No Rio, Solano conheceu Abdias Nascimento, que, na mesma época que ele, morou em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. No livro “Abdias Nascimento — o griot e as muralhas”, o poeta Éle Semog diz que alguns intelectuais, artistas e militantes do movimento negro chegaram a levantar a hipótese de os dois terem sido rivais, devido às propostas do Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias, e o Teatro Folclórico Brasileiro — mais tarde transformado em Teatro Popular Brasileiro —, de Solano Trindade. A versão é desmentida pelo próprio Abdias, que diz ter conhecido o poeta no momento em que acabara de se desiludir com o integralismo e começara a ter aproximação maior com os negros cariocas, cuja relação com sua cultura, por meio da religiosidade (especialmente o candomblé), era mais expressiva e direta do que em São Paulo.
No livro, no capítulo “Aprendendo os caminhos”, Abdias comenta: “Foi uma nova educação para mim, passei a freqüentar os terreiros e a conviver com outro tipo de intelectual. Um deles era o poeta Solano Trindade, um amigo querido, com quem eu discutia e brigava por causa daquela sua história de Partido Comunista; mas ele tinha a grandiosidade da cultura negra, ele tinha essa consciência.”
O mesmo Abdias diz num texto que escreveu em 1944: “Entre os raros poetas negros que conheço neste Brasil ‘mestiço’, Solano Trindade é o que melhor me satisfaz. Porque Solano Trindade não se encerrou na torre de marfim da arte e tampouco escreveu poesia negra com linguagem de ‘negro-branco’. (…) Ele é Negro, sente como Negro, e como tal cantou as dores, as alegrias e as aspirações libertárias do afro-brasileiro. Para mim Solano Trindade é o brado da raça, maior poeta negro do Brasil contemporâneo.”
Maria Margarida Trindade |
Teatro popular
Solano foi militante ativo também do Partido Comunista, chegando a promover algumas reuniões da célula a que pertencia em sua casa. Quando o partido passou a ser perseguido pelo Governo do Presidente Dutra, foi preso, mas não abandou as convicções sobre liberdade e democracia — embora tenha se desligado mais tarde do PCB por discordar dos companheiros que diziam não haver no Brasil problema racial, apenas social.
O sonho de esclarecer o povo sobre suas origens foi realizado com a criação do Teatro Popular Brasileiro (TPB), em 1950, com a mulher Maria Margarida Trindade e o sociólogo Edison Carneiro. As peças eram basicamente protagonizadas por gente das classes menos favorecidas, como domésticas e operários. Com o grupo, produziu vários espetáculos da genuína cultura popular brasileira, como capoeira, maracatu, bumba-meu-boi, congada, lundu, batuque e jongo, entre outros ritmos e danças que apresentou em turnê pelo Brasil e para companhias estrangeiras. Com isso, teve a oportunidade de levar o TPB para exibições na Polônia e na antiga Tchecoslováquia.
Esta fase é lembrada pelo pesquisador e produtor cultural Haroldo Costa, que conheceu Solano no início dos anos 50, quando era um jovem estudante do Colégio Pedro II, mas já freqüentava o polígono cultural que funcionava no Centro do Rio, entre e a Cinelândia e a Graça Aranha, formado pelo Theatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes, a Biblioteca Nacional, a Associação Brasileira de Imprensa, o Teatro Ginástico e o Palácio Gustavo Capanema, então sede do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Em frente ao prédio da ABI havia um restaurante, o Vermelhinho, freqüentado por jornalistas, alunos da Escola de Belas Artes, poetas e gente de teatro e cinema. “Era a meca da intelectualidade carioca”, diz Haroldo, relembrando que, nesse período, Solano, Abdias e Ironildes Rodrigues colaboravam com atores iniciantes:
— O Solano, que já havia criado o Teatro do Folclore Brasileiro, escreveu dois quadros para o chamado Grupo dos Novos, do qual eu fazia parte e que se apresentava no Auditório da ABI : “Maracatu” e “Os pregões do Recife”. Depois houve um mal-entendido entre ele e a Direção do TFB. Foi então que ele fundou o TPB.
Teatro Folclórico em cena |
Assim como Haroldo, Raquel Trindade se lembra bem do Vermelhinho:
— Quando minha mãe, eu e minha irmã chegamos do Recife, em 1950, fomos direto ao restaurante. Encontramos o Grande Othelo e minha mãe pediu a ele que avisasse meu pai de que estávamos no Rio. Logo que recebeu a notícia, ele foi nos buscar e a gente foi morar na Gamboa, na Rua do Livramento. Eu era pequena, mas cheguei a freqüentar com meu pai o Vermelhinho e a ABI, lugares onde conheci grandes artistas, como o maestro Abgail Moura, da Orquestra Afro-Brasileira.
Quando Haroldo Costa lançou o Teatro Folclórico, também contou com ajuda do artista, que, juntamente com a mulher, passou a ensinar coreografias afro-brasileiras à nova companhia:
— Foi nessa época que ele escreveu “Tem gente com fome”, poema que é a base para a compreensão da poesia negra engajada. Naquele momento, Solano declamou o caráter social profundo dos passageiros dos antigos trens da Leopoldina. O poema funciona como uma importante testemunha daquele período.
Raquel hoje, entre suas telas |
Herança
Em 1969, Solano Trindade foi viver em Embu, que conheceu por intermédio do escultor Claudionor Assis Dias. Lá, fez diversas apresentações do TPB e lançou a Feira de Artes e Artesanato, ajudando a transformar a cidade em um dos mais importantes atrativos culturais e turísticos de São Paulo, hoje conhecido como Embu das Artes. É lá também que fica a sede do Teatro Popular Solano Trindade, administrado pela Raquel, e onde a Prefeitura celebrou o centenário de nascimento de Solano com selo e carimbo postal com sua efígie, lançados pelos Correios.
O poeta — que também teve participação como ator nos filmes “Agulha no palheiro” (Alex Vianny, 1952), “A hora e a vez de Augusto Matraga” (Roberto Santos, 1965) e “Santo milagroso” (Carlos Coimbra, 1966) — morreu no Rio de Janeiro, em 1974, vítima de arteriosclerose, deixando como herança um legado artístico inestimável:
— A importância do meu pai — diz Raquel — está nas contribuições que ele deu ao País por meio de sua militância política, e ao Movimento Negro, com a preservação da cultura afro-brasileira. Este era o verdadeiro sentido da sua célebre frase “pesquisar as origens do povo e devolvê-las em forma de arte”. É por isso que até hoje eu, meus filhos, netos e bisnetos continuamos esse trabalho, que passou a ser também muito importante para as nossas vidas.