Caso Genivaldo: investigação lerda


05/08/2022


Por Marcelo Auler, conselheiro da ABI, em Marcelo Auler Repórter

Depois de imobilizarem Genivaldo no chão, os agentes da PRF praticaram tortura e improvisaram uma “câmara de gás” na mala da Blazer que utilizavam. (Reprodução das redes sociais)

Mais de dois meses depois do assassinato do sergipano Genivaldo Jesus dos Santos, um cidadão negro, de 38 anos, morto em 25 de maio, no município de Umbaúba (SE), asfixiado por policiais rodoviários federais na mala da Blazer da Polícia Rodoviária Federal (PRF) transformada em “câmara de gás”, a Polícia Federal não conseguiu concluir o Inquérito Policial 2022.0034816, que investiga o caso.

Segundo as informações oficiais, faltam laudos periciais, em especial o que se propôs medir a quantidade de oxigênio na mala do carro após os agentes rodoviários federais terem detonado uma granada de gás lacrimogêneo.

Nota do Ministério Público Federal (MPF) de Sergipe informou que a polícia federal pediu nova dilatação do prazo para conclusão da investigação. Essa dilatação já tinha sido admitida aos familiares da vítima, em reunião realizada na segunda-feira (25/07), pelo procurador da República Rômulo Almeida, que responde pelo controle externo das polícias em Sergipe. Trata-se da segunda dilatação do prazo que, oficialmente, era de 30 dias. A primeira prorrogação venceu em 31 de julho (
domingo). Agora se fala em termino da investigação apenas no final deste mês.

Após receber os laudos necroscópico do Instituto Médico Legal do estado e o do oxigênio, encomendado ao Instituto Nacional de Criminalística em Brasília, a Polícia Federal necessitará de dez a quinze dias para apresentar o relatório final da investigação A partir desta conclusão é que o Ministério Público Federal embasará uma provável denúncia a ser apresentada ao juiz Rafael Soares Souza, da 7 ª Vara Federal Criminal, localizada no município de Estância (SE), onde o processo criminal tramitará.

Sigilo inexplicado

A demora, por menos que queiram os representantes do MPF, gera suspeita, uma vez que o assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, ocorrido dez dias depois no Vale do Javari, no extremo-oeste do Amazonas, mesmo sem filmagens ou testemunhas oculares como aconteceu em Umbaúba, em apenas 15 dias teve os envolvidos identificados e presos. Lá, verdade que com a ajuda dos indígenas, até os corpos e a embarcação em que os dois viajavam foram localizados. Pressionada, a Polícia Federal do Amazonas criou um chamado “comitê de crise”, através do qual divulgou os resultados das apurações e até deduções precipitadas, como a de que não existiriam mandantes do crime, o que muitos duvidaram e acabou se mostrando inverídico.

Já em Sergipe, apesar de o crime ter sido filmado e as cenas bárbaras terem chocado a todos, a Polícia Federal – assim como os representantes do Ministério Público Federal – guardam precioso e inexplicável silêncio sobre o que foi apurado no inquérito. Até mesmo o nome dos envolvidos diretamente na morte de Genivaldo – os policiais rodoviários federais Kleber Nascimento Freitas, Paulo Rodolpho Lima Nascimento e William de Barros Noia – jamais foram divulgados oficialmente. Coube a jornalistas do The Intercept e, posteriormente, do Fantástico, descobrir tais nomes.

Na conversa com familiares de Genivaldo e os advogados que os representam – Luiz Arlan Menezes, por parte da viúva, Maria Fabiana; Monalisa dos Santos Batista, pela mãe, Maria Vicente, e as irmãs – o procurador não ofereceu detalhes da denúncia que pretende fazer. Apesar de entenderem que três dos policiais rodoviários federais terão que responder por homicídio qualificado com a prática de torturas, entre os advogados há quem tema que o MPF classifique o caso como de lesão corporal que resultou em morte, amenizando o crime em si.

Para a advogada Priscila Míriam do Espírito Santos Mendes, que também representa a companheira do sergipano, não há duvida de que os três agentes da PRF envolvidos diretamente na detenção de Genivaldo por ele circular de moto sem capacete, são responsáveis pela sua morte por asfixia. Consequência direta do gás lacrimogêneo.

Para a classificação da asfixia pelo gás lacrimogêneo é que alegam ser importante a perícia que medirá o oxigênio que restou na mala do carro da PRF. Trata-se de uma perícia que foi considerada inédita pelo superintendente da Polícia Federal em Sergipe, o delegado Juner Caldeira Barbosa, durante um encontro com o presidente da OAB-SE, Daniel Costa e diversos outros advogados, em 12 de junho passado. Desde então se espera este laudo, que ainda não foi apresentado.

Só um agente tinha gás lacrimogêneo

Na ocasião, Barbosa deixou clara a preocupação da Polícia Federal em “blindar o inquérito”. Admitiu que sofreria pressões de ambos os lados: dos familiares da vítima e da sociedade civil por conta da barbárie praticada e da repercussão que o caso teve; mas também pela defesa dos agentes da PRF envolvidos. Embora não tenha verbalizado, a idéia que deixou transparecer foi a de não restar dúvidas sobre a causa morte, em especial se for confirmada como consequência do gás lacrimogêneo. o que afasta de vez a versão de um possível mal súbito, que os agentes rodoviários alegaram.

Em uma manifestação contrária a um pedido de prisão preventiva dos agentes rodoviários, levada ao juiz pelos advogados que representam a mãe de Genivaldo, o MPF explicou que “há a necessidade de se conduzir a atividade investigatória com base em elementos sólidos, notadamente em relação à individualização do nexo causal, individualização de conduta e consistência do acervo de provas”. Para tal, dizem depender da conclusão das perícias. No despacho os procuradores da República insistiram que o compromisso do MPF é de responsabilizarem “os possíveis envolvidos a partir de uma base probatória segura e que respalde decisões sustentáveis, inclusive relacionadas a eventual requerimento de prisão preventiva dos investigados”.

Apesar de todo o sigilo do inquérito presidido pelo delegado federal Fredson Vital já se sabe que os agentes rodoviários federais Freitas e Noia deixaram claro em seus depoimentos que não atuam com as bombas de gás lacrimogêneo. Por não possuírem o curso específico para uso desta arma, mesmo ela sendo considerada não letal, eles sequer as recebem da corporação. Logo, a que foi detonada naquela manhã estava em poder do terceiro PRF, o agente Lima Nascimento.

Também circulou a informação relatada pelos advogados no pedido de prisão preventiva que acabou rejeitado, de que os agentes rodoviários federais, após constatarem a morte do sergipano tentaram evitar a necropsia. Pretendiam encaminhar o corpo diretamente à funerária. Isto foi até comentado na manifestação assinada por sete procuradores rejeitando o pedido de prisão preventiva. Alegaram:

“Sobre a aventada notícia de que os investigados “queriam” evitar a elaboração de laudo sobre a causa da morte de GENIVALDO, trata-se de circunstância relevante, mas ainda despida de uma necessária corroboração, não tendo os requerentes apresentado nenhum elemento, ainda que indiciário, que demonstre a aludida interferência, o que também deverá ser apurado no inquérito policial.”

Mais dois inquéritos investigam PRF

O mesmo agente Lima Nascimento esteve envolvido em outros dois casos de violência contra moradores de Umbaúba, tal como reportamos em PRF-SE, um histórico de violências e violações. O primeiro deles tendo como vítima a menor M.D.N., então com 17 anos, por trafegar em uma moto sem habilitação para tal, em agosto de 2020. Ela, como narrou ao Blog Marcelo Auler – repórter foi perseguida pela cidade, derrubada da sua moto e acabou tendo uma fratura do fêmur.

Episódio parecido ao de M.D.N – uma queda da moto provocada pela ação policial – foi relatado na delegacia de Polícia Civil da mesma Umbaúba por outro jovem morador da cidade. Ocorreu em 23 de maio, isto é, dois dias antes o assassinato de Genivaldo, sem que tivesse se tornado público.

Encorajado pela repercussão do assassinato de Genivaldo, no dia 25, J., de 21 anos, procurou a polícia registrando tardiamente a perseguição que sofreu, na qual foi derrubado da motocicleta, após ter parado de fugir e se rendido aos dois policiais rodoviários federais. Foi o que narrou à jornalista Thaísa Oliveira, da Folha de S.Paulo, na reportagem Jovens dizem terem sido agredidos por PRFs em Umbaúba dois dias antes da morte de Genivaldo, a primeira a noticiar o registro tardio do fato ocorrido antes do assassinato de Genivaldo.

Estes dois casos geraram dois novos inquéritos na Polícia Federal. Mas tudo o que se sabe é que estes jovens foram ouvidas pelos policiais encarregados da investigação. Ambas as apurações também são feitas em segredo.

Fraude processual

Na ocorrência de agosto de 2020 também esteve envolvido o agente rodoviário federal Clenilson José dos Santos, cujo nome consta do Boletim de Ocorrência (BO) registrado na PRF com o relato da prisão de Genivaldo. Santos, ao lado de outro colega – Adeilton dos Santos Nunes – fazia parte da equipe na manhã do dia 25 de maio. Os dois, porém, não se envolveram diretamente no assassinato.

Mas, por motivos desconhecidos, assinaram o BO com informações desmentidas pelos vídeos feitos por populares que viralizaram nas redes sociais. Registraram, por exemplo, uma suposta resistência do sergipano às ordens dos policiais para justificar o uso de “técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo” na contenção da vítima. A resistência, como mostram as filmagens não ocorreu e as técnicas “de menor potencial ofensivo” acabaram sendo fatais.

Não se sabe se o delegado Vital irá envolver esses dois agentes rodoviários no seu relatório. Afinal, ainda que não tenham participado do assassinato em si, para os advogados que atuarão como assistentes de acusação representando os familiares da vitima ambos devem responder por uma possível fraude processual. Apontam não apenas o registro distorcido, mas também o episódio da suspeita de os agentes rodoviários terem tentado levar o corpo direto a uma funerária para evitar o exame cadavérico por legistas.

Companheira ganha emprego

Paralelamente a tudo isso, tanto a companheira de Genivaldo, Fabiana – mãe do filho dele de sete anos –, assim como a mãe do sergipano, Maria Vicente, de 74 anos, não receberam as ajudas prometidas após o assassinato. Genivaldo, portador de problemas psíquicos, contava com o Benefício de Prestação Continuada (BPC) que lhe garantia um salário mínimo mensal, com o qual sobrevivia e também ajudava sua mãe, que durante toda a vida trabalhou na lavoura para sustentar os filhos. Como o BPC não é hereditário, cessou com sua morte, sem que a companheira e o filho menor contem com qualquer outro rendimento.

Fabiana, até a semana passada recebeu como ajuda apenas R$ 250,00, repassados pelo município, como auxílio aluguel. Alem disso lhe foram entregues duas cestas básicas, uma delas por um morador da cidade. Mas a prefeitura abriu uma vaga para ela contratando-a através da Secretaria Municipal de Agricultura. Há ainda um projeto de lei no Senado prevendo pensão para o filho e a companheira. Ele porém ainda demorará na tramitação. Já a mãe de Genivaldo nada recebeu.