Carta de Pinheiro Salles ao Presidente Lula


08/05/2006


Hora de completar a anistia

Tenho nas mãos o telegrama que você encaminhou aos familiares da senhora Maria de Campos Batista — a Dona Santa —, um dia depois de sua morte, apresentando as “sinceras condolências” e colocando o governo “à disposição para continuar a luta até encontrar os restos mortais de seu filho”, desaparecido em 1970, durante a truculência do General Médici. Então, Lula, que as suas palavras possam representar mais que um momentâneo lenitivo à família dessa mãe. Elas devem ser um compromisso, para que o seu governo fique na história como o primeiro, desde Sarney, que não aceitou a cumplicidade com o regime implantado em 1964, principalmente com o terrorismo de Estado que passou a vigorar a partir da edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968. 

Maria de Campos Batista procurou, durante 36 anos, o seu filho Marcos Antônio Dias Batista, sumido quando era um líder estudantil de apenas 15 anos de idade. Ela deixava sempre aberta a porta da sua casa, em Goiânia, na esperança de que ele pudesse entrar a qualquer momento. E percorreu delegacias, quartéis e presídios de todo o País, na tentativa de localizá-lo. Em 1996, afinal, o governo o reconheceu oficialmente como morto. Mas ela não desistiu de procurá-lo. Em setembro de 2005, o juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho determinou ao Ministro da Defesa que, em audiência reservada, informasse à família de Marcos Antônio as circunstâncias que envolveram sua prisão e morte, dando um prazo de 90 dias para entregar os seus restos mortais. Em seguida, no dia 15 de fevereiro (2006), Maria de Campos e outros familiares foram recebidos, em Brasília, pelo Ministro da Defesa e Vice-Presidente da República, José Alencar. 

Todos choraram durante a audiência, o ministro também. Dona Santa saiu convencida de que não demoraria a sepultar Marcos Antônio, ou o que resta dele, no mesmo túmulo onde lhe esperava o pai, Waldomiro Dias Batista, que faleceu lamentando não rever o seu menino. Mas, quando ela retornava à capital goiana, um automóvel, na contramão, bateu no carro em que viajava, causando-lhe a morte. No dia seguinte, durante o velório, José Alencar, mais uma vez com lágrimas na face, disse que, sendo tão grande a vontade dessa mulher de abraçar Marcos Antônio, já sem a expectativa de vê-lo vivo, preferiu ir ao seu encontro. E Dona Santa foi acariciar o filho, como frisou o Vice-Presidente da República, mas o corpo dela repousou na cova onde planejava depositar os frágeis ossinhos da criança que teve de ser assassinada para que a ditadura se sentisse mais fortalecida. 

Tudo isso, Lula, não acontece por acaso. Portanto, precisamos compreender o que realmente significou a ditadura militar na vida do povo brasileiro. Como Presidente da República, você não desconhece o esforço que ainda se faz, 42 anos após o golpe de Estado, para se garantir o definitivo esquecimento desses 21 anos de trevas. É que a ditadura militar traz uma série de incômodos aos políticos que direta ou indiretamente estiveram à sua frente e hoje se consideram arautos da democracia. Evitando o aprofundamento da questão, os governos que vieram depois se recusaram a enfrentar esse período obscuro, limitando-se a exonerar um ou outro torturador quando ele era identificado no exercício de um cargo público. 

Sabemos que a ditadura deixou a maioria da população doente, sem poder falar e com medo até de escutar. É terrível a constatação de que a democracia ainda seja tão vulnerável que não permita a recuperação da memória, tornando as pessoas mais doentes, agora de ignorância ou amnésia, como se o passado nada tivesse a ensinar ao presente. E isso é muito perigoso, porque, como disse D. Paulo Evaristo Arns, “os povos que não podem ou não querem confrontar-se com seu passado histórico estão condenados a repeti-lo”. Os fatos pretéritos contêm não apenas traços de identidade de um povo, mas também lições expressivas que nos ajudam a entender o momento atual e a construir de melhor forma o futuro, eliminando-se os riscos da repetição das atrocidades. 

Não é demais, Lula, a lembrança de alguns dados sobre a ditadura. Dentro de uma sórdida campanha ideológica, o golpe militar se efetivou com a agressiva presença do governo dos Estados Unidos, que calculou os seus efeitos em toda a América Latina. Houve uma intensa comunicação entre o embaixador norte-americano no Brasil, Lincoln Gordon, e os seus superiores na Casa Branca, aperfeiçoando os detalhes do apoio ao golpe, com a operação Brother Sam, que só passou a ser desmobilizada após a confirmação do sucesso do movimento. A operação incluía porta-aviões, destróieres, navio para transporte de helicópteros, petroleiros, aviões de carga e de abastecimento, caças e um posto de comando aerotransportado, além de barris de combustível e 110 toneladas de armas e munições. 

O governo dos militares foi reconhecido enquanto o Presidente João Goulart ainda se encontrava no Brasil. E as perseguições políticas se estenderam pelo País inteiro. As primeiras denúncias de torturas vieram à tona no Rio de Janeiro e em Pernambuco, onde o admirado líder comunista Gregório Bezerra foi preso e entregue ao Tenente-Coronel Darcy Villocq Viana, que o amarrou e o arrastou pelas ruas de Recife, “para servir de exemplo”. O medo corroeu a dignidade de milhares de brasileiros, que, sem alternativa a curto prazo, terminavam se submetendo à indiferença, calando-se, refugiando-se e tudo fazendo para que as suas famílias não fossem molestadas. Mas, com o tempo, a rebeldia de poucos virou a resistência de muitos. Apesar da intolerância em todos os níveis, 100 mil pessoas saíram às ruas, em junho de 1968, numa fulgurante manifestação no Rio de Janeiro. 

O terror absoluto se consolidou com a imposição do Ato Institucional nº 5, que, certamente, Hitler e Mussolini gostariam de assinar. Você sabe o que vem depois, Lula, mesmo não tendo informações pormenorizadas a respeito da amplitude da violência que atingiu prioritariamente os militantes políticos de esquerda (a tortura e a morte se transformaram numa prática rotineira). É verdade que, em 1980, você foi arrancado do seu sindicato, das suas articulações partidárias, e colocado atrás das grades por 51 dias, mas quando o sangue dos revolucionários já havia sido retirado das paredes e do piso dos cubículos em que você foi jogado. Era a época da abertura política do General Figueiredo, depois da distensão lenta, gradual e segura do General Geisel, após a Lei da Anistia. 

Lembre-se que a ditadura militar no Brasil descerrou as portas para outras no Cone Sul, isto é, na Argentina, no Uruguai e Chile, incluindo o Paraguai na cooperação entre os agentes da repressão e a atuação fascista na América do Sul (Operação Condor), na década de 70, com a ajuda financeira dos Estados Unidos. Assim, Lula, os malefícios da ditadura ainda estão presentes nos vários escalões do Estado e da própria vida do povo, porque nenhum governante adotou medidas que assegurassem a necessária ruptura com o tempo do terror. Os prejuízos são incalculáveis na economia, na política, na educação, na ciência e tecnologia, na cultura, na comunicação, nas artes, no Judiciário, no esporte e, mais ainda, no comportamento da polícia, que insiste em desrespeitar os direitos humanos mais elementares. 

Quando acontecem tragédias como a de Dona Santa, Zuzu Angel e outras mães de desaparecidos, devemos nos sentir diminuídos, porque, como disse o poeta, fazemos parte da espécie humana. Mas não apenas por isso. Seus filhos foram heróis e, não sendo egoístas, lhes ofereceram a oportunidade de experimentar a grandeza das heroínas. É nesse momento que somos chamados a refletir sobre o nosso papel na luta de classes, sobre as conquistas coletivas, sobre a união dos oprimidos. E como estou me dirigindo ao Presidente da República, devo dizer-lhe, Lula, que hoje você está no Palácio do Planalto por causa dessas pessoas e dos heróis anônimos que desafiaram as intempéries e perceberam que ninguém tem direito à omissão diante da tirania. 

Lembro-me da época em que se lutava pela anistia. Os clamores ganharam as consciências e praças no território nacional. Quando o governo decidiu propor uma anistia limitada, os protestos se multiplicaram: todos a queriam ampla, geral e irrestrita. O poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu: “Vem completa, vem de túnica imaculada, vem nua, anistia. E nua, não darás margem a murmurações e recriminações, ressentimentos, vociferações e lágrimas. Assim te desejo, assim te espero para os que necessitam de ti e os que já não necessitam, pois habitam a mansão além da política, das crises sociais e da injustiça”. Só que ela não veio assim. Pudemos deixar os porões da ditadura, retornar do exílio, sair da clandestinidade. Mas hoje, 27 anos depois, muitos ainda são os ressentimentos, as dores, recriminações e lágrimas. 

Durante esse tempo, os sucessivos governos vêm buscando meios legais para remendar a Lei nº 6.683, de 28 de agosto de l979, que teve a preocupação de cercear direitos e garantir a impunidade dos algozes. Apesar dos desgastes e cansaços dos familiares dos mortos e desaparecidos e das próprias vítimas vivas do regime discricionário, os governos sempre são importunados, porque não resolvem o problema, cedendo às pressões dos fascistas e de seus aliados, que mais gostariam de continuar prendendo, torturando e matando os opositores. E, sendo um anistiado, você não pode dar as costas para os anistiados. Chegou a hora, Lula, de superar os seus antecessores, não deixar dúvida sobre o seu compromisso democrático, enfrentar a extrema-direita, o fascismo, os inimigos, completar a anistia política, colocar um ponto final nos dissabores e incertezas das pessoas envolvidas nesse processo doloroso, abrir uma nova página na história do País. 

Não deixe, Lula, que isso fique para um eventual segundo mandato. Faça-o agora, para ter maior confiança na possibilidade desse novo mandato, quando o seu governo poderá adquirir condições de erguer a cabeça diante de quem participou da heróica resistência, ampliando os horizontes da humanidade. Escancare os famigerados arquivos, assuma a busca dos desaparecidos, encontre alternativas para a Advocacia Geral da União não ficar forjando recursos protelatórios à espera da morte dos sobreviventes que responsabilizam o Estado pelos crimes perpetrados, agilize a apreciação dos requerimentos na Comissão Nacional de Anistia, pague as indenizações concedidas e, já sendo mais difícil punir os torturadores, convide Oscar Niemeyer para projetar um monumento a ser construído, na Esplanada dos Ministérios, aos mortos e desaparecidos na luta contra a ditadura militar. 

Desculpe, Lula, a minha ousadia. É que a recente morte da Dona Santa me despertou a justa indignação dos injustiçados. E posso lhe afirmar que, se no Brasil não morreram seis milhões de perseguidos em campos de concentração, a ditadura conseguiu ultrapassar os nazistas na intensidade da violência física contra os seus adversários. Sei que a comparação pode causar perplexidade. Entretanto, estou ciente da minha responsabilidade, inclusive na continuidade da luta pelo socialismo. Se eu sou contundente nessas afirmações, é que os meus nove anos de cárcere (1970-1979) me levaram a presenciar o que os meus olhos não desejam ver nunca mais. No DOI-Codi (Oban), em São Paulo, e no Dops desse Estado e do Rio Grande do Sul, eu ouvi gritos, berros inumanos, gemidos que me traziam a mesma dor indescritível dos momentos em que eu estava tendo a alma dilacerada, a carne retalhada e os ossos partidos. 

Acrescento, Lula, que o meu corpo e o meu sangue testemunharam os horrores que jamais devem vilipendiar qualquer ser humano do meu País. Por isso, como jornalista, cidadão e como membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, após um Acidente Vascular Cerebral (derrame) que me agravou as irreversíveis seqüelas das torturas, comprometendo a minha fala, eu senti necessidade de escrever esta carta. Para concluir, pediria que você refletisse sobre as minhas observações, considerando a clássica declaração de Cícero, o insuperável tribuno romano: “A história é mestra da vida, senhora dos tempos e luz da verdade”. Faça justiça. Um abraço, Presidente Lula.