Cantos de guerra do BOPE fazem apologia do extermínio


22/08/2024


Por Rogério Marques, conselheiro da ABI

“Homem de preto Qual é sua missão? Entrar pela favela E deixar corpos no chão.”

Segunda-feira, 12 de agosto, uma das poucas noites friorentas do tímido inverno carioca. Por volta de 21 horas, o silêncio é quebrado por uma tropa de policiais do Bope que pratica exercícios físicos de corrida e repete palavras de ordem puxadas por um líder. Tudo acontece impunemente, nas ruas de Laranjeiras, onde está localizado o batalhão. Uma apologia da violência e do preconceito contra os moradores de favelas. Outros “cantos” falam da “proteção de Deus”, tudo junto e misturado.

Se em público aquela tropa, mantida com o dinheiro dos nossos impostos, revela essas e outras práticas sem o menor pudor, o que será ensinado a esses soldados no interior do batalhão que tem como símbolo uma caveira atravessada por um punhal?

Em matéria na revista Piauí (edição 7, fevereiro 2007), o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro comenta o livro Elite da Tropa, escrito por Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel (Objetiva, 2006). A obra, que aborda entre outras coisas a brutalidade policial e o envolvimento da polícia com a criminalidade, serviu de base ao filme Tropa de Elite, dirigido por José Padilha.

PROTESTO DA ABI

Em sua resenha, depois de fazer referência ao “inacreditável ‘canto de guerra’ declamado pelos soldados do Bope logo no prefácio do livro” Alencastro lembra que “as andanças da tropa do BOPE cantando esta barbaridade foram testemunhadas, desde 2005, pelo jornalista Fritz Utzeri. E motivaram, em outubro do mesmo ano – antes da publicação de Elite da Tropa -, uma representação de protesto da Associação Brasileira de Imprensa junto ao Ministério da Justiça”.

Naquele ano de 2005 o jornalista e escritor Fritz Utzeri (1945-2013), morador de Laranjeiras, era membro efetivo do Conselho Deliberativo da ABI. Em seu blog Montbläat ele denunciou mais de uma vez, indignado, o desafio do Bope às instituições, com seus “cantos de guerra”.

O cotidiano de violência não é exclusividade da PM do Rio. Ele está impregnado nas forças policiais brasileiras há séculos, e desde sempre voltado contra a população mais pobre e negra. Em seu mesmo texto na revista Piauí, Luiz Felipe de Alencastro faz uma análise sobre as origens dessa violência policial: “Durante três séculos nosso país esteve estruturado em torno do maior sistema escravagista das Américas. Depois da independência, no Brasil, como no sul dos Estados Unidos, o escravismo passou a ser consubstancial ao State building. Houve, assim, uma modernização do escravismo, para colocá-lo em sintonia com as novas doutrinas ocidentais que regulavam as liberdades públicas.”

A BALA NÃO ERRA O NEGRO

Reportagens divulgadas pela mídia em novembro de 2022 revelam números estarrecedores de um relatório da Rede de Observatórios da Segurança Pública, instituição que acompanha políticas de segurança, com especial ênfase na violência policial. Segundo o boletim “Pele alvo: a bala não erra o negro”, a cada quatro horas uma pessoa negra foi morta pela polícia brasileira em 2022.

Os dados foram obtidos junto às secretarias estaduais de segurança pública de Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo através da Lei de Acesso à Informação (LAI). Nessa estatística, a Bahia ficou em primeiro lugar e o Rio em segundo, com 1.042 mortes de pessoas negras, 86,98% do total.

A violência e o racismo estão impregnados não apenas na polícia, mas em boa parte da população brasileira, que justifica ou apoia a truculência das forças de segurança, os espancamentos e as torturas contra presos ou mesmo pessoas consideradas “suspeitas”. Isso explica, pelo menos em parte, a eleição de Jair Bolsonaro, notório defensor da tortura, para a presidência da república.

“O TIRO É NA CABEÇA”

Oito anos depois dos “cantos de guerra” que indignaram o jornalista Fritz Utzeri e muitas outras pessoas, o Bope insistia na apologia à violência. Na edição do dia 30 de maio de 2013 o Jornal das Dez, da GloboNews, exibiu um vídeo gravado junto ao Parque nas imediações do quartel da corporação em que uma tropa cantava:

“É o Bope preparando a incursão
E na incursão não tem negociação
O tiro é na cabeça e o agressor no chão
E volta pro quartel, pra comemoração.”

O jornal entrevistou frequentadores do parque. Uma mulher que não quis se identificar mostrou-se indignada: “Eu acho errado que uma corporação do Estado, que está aí para prover segurança para o cidadão, espalhe uma cultura extremamente violenta, pesada, de guerra.”

Mas houve também quem apoiasse a apologia à violência, como um homem que declarou: “Acho até bacana. É um incentivo. Sinceramente, não me afeta em nada. Acho tranquilo. Para mim, não tem o menor problema.”

O comandante do Bope na época era o coronel René Alonso. Segundo o Jornal das Dez, ele não quis dar entrevista. Em nota, a assessoria de imprensa da polícia afirmou que a prática de cantar músicas de apologia à violência é proibida e que o responsável seria responsabilizado pelo ato. As canções, segundo o texto, são muito antigas e não condizem com o momento atual do Bope.

Passados mais 11 anos, a realidade desmente as notas oficiais burocráticas. O Bope continua afrontando as instituições, como se estivesse acima delas. Despreza os Direitos Humanos aos gritos, nas ruas, ao lado da residência oficial do governador do Estado, o Palácio Laranjeiras. Escancara, assim, impunemente, vergonhosamente, um problema que o Brasil precisa resolver, com alguns séculos de atraso.