06/02/2022
Publicado non jornal Folha de S. Paulo.
Pense duas vezes antes de se tornar jornalista. Pense uma vez mais antes de fazer jornalismo numa cidade brasileira de médio ou pequeno porte.
Como mostra “Boca Fechada”, documentário recém-lançado em serviços de streaming, pelo menos 64 comunicadores foram assassinados no Brasil de 1995 a 2018 em função do exercício da profissão.
Na América Latina, o país só fica atrás do México, que é “um ponto fora da curva” nas palavras de Artur Romeu, da ONG Repórteres sem Fronteiras.
Seis em cada dez jornalistas assassinados no Brasil nesse período trabalhavam em cidades com população abaixo de 200 mil habitantes. É o caso de Bragança, no nordeste do Pará, onde Jairo de Sousa foi morto com dois tiros nas costas quando entrava na rádio Pérola, na qual era locutor.
A equipe do filme, dirigido por Marcelo Costa Lordello e Aquiles Lopes de Oliveira, foi a Bragança para esquadrinhar o crime que comoveu a cidade em junho de 2018. “Com esse microfone, ele perturbou muita gente”, conta Jaiane, filha de Sousa.
A jovem demonstra revolta com os desdobramentos do caso.
Os assassinos, com a promessa de receber R$ 30 mil pelo assassinato, logo foram presos, mas o acusado de ser o mandante do crime, o vereador César Monteiro (PR), conseguiu um habeas corpus que o manteve longe das grades —ele só foi preso meses depois de encerradas as filmagens.
A prisão dos mentores dos assassinatos é uma exceção. No período de que trata o documentário, apenas 11 mandantes de crimes desse tipo foram a julgamento no Brasil.
Como afirma Samira Castro, do Sindicato dos Jornalistas do Ceará, “o combustível para esse alto nível de violência contra os comunicadores é a impunidade”.
Fica no litoral cearense outra cidade visitada pela produção de “Boca Fechada”. Em Camocim, Gleydson Carvalho, também radialista de tom contundente, foi assassinado com três tiros em agosto de 2015. O pistoleiro que o matou foi preso, mas os mandantes não, segundo o documentário.
Três meses depois da morte de Carvalho, em novembro de 2015, o alvo foi Israel Silva, o terceiro caso retratado pelo filme. Foi morto em uma papelaria em Lagoa de Itaenga, no interior de Pernambuco.
Embora ele e a família sofressem ameaças, Silva continuou a denunciar líderes da região na rádio comunitária onde atuava, associando-os à lavagem de dinheiro. Homens ligados ao tráfico de drogas foram presos, mas a família acredita, com convicção, que o crime teve motivação política.
“Boca Fechada” é, por vezes, desolador. “As pessoas antes tentavam comprar [os jornalistas]. Agora, não. Elas removem o problema. Que jeito? Mandam matar”, diz Felipe Gilé, do Sindicato dos Jornalistas do Pará.
“A profissão de jornalista é perigosa? É, sempre corremos riscos, sempre foi assim. Você denuncia fatos que ninguém quer que venham a público”, diz Angelina Nunes, ex-presidente da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo).
“Quando se trabalha numa cidade pequena, longe das capitais, você está tocando um veículo sozinho ou você mesmo é o veículo, no caso dos blogueiros. É uma situação de muita vulnerabilidade.”
Ao retratar de modo objetivo e sóbrio esses três assassinatos, que simbolizam um quadro bem mais abrangente, “Boca Fechada” provoca incômodo e indignação. É um jeito de levar o Brasil a se olhar no espelho, e o que se vê é ruína.