31/05/2021
Por Mathias Alencastro, Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra), publicado na Folha de S. Paulo.
Veículos que optaram por dar pouco destaque à manifestação fizeram mais do que privar a sua audiência de uma notícia importante.
O respeito aos mortos em tragédias nacionais é uma das prerrogativas mais nobres e supremas do chefe de Estado. Para mostrar aos americanos a diferença entre um estadista e Donald Trump, Joseph Biden organizou toda a sua campanha eleitoral em torno da homenagem às vítimas da pandemia. Muitas de suas atividades se resumiam a encontrar famílias para compartilhar seu sofrimento. Na véspera da sua posse, ele se recolheu, numa cerimônia grave e sóbria, na frente do Memorial Lincoln.
Depois da publicação da comovente carta aberta de uma cidadã enlutada em janeiro de 2021 e das manifestações associativas, Emmanuel Macron instituiu um longo processo de luto nacional. Na semana passada, a Assembleia conferiu às vítimas da pandemia o estatuto de “mortas a serviço da República”, que abre o caminho para diversas compensações a familiares.
O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, teve a ideia importante de organizar cinco dias de luto para as vítimas da pandemia e da violência de gênero. Uma forma de vincular a catástrofe sanitária ao drama social que assola o país. Até o presidente mexicano López Obrador, notório negacionista, declarou três dias de luto oficial em novembro.
O Brasil não tem presidente da República no sentido simbólico da função. Os passeios de moto, as barbaridades proferidas na porta do Palácio do Planalto e as provocações nas redes sociais são repetidas manifestações do desprezo ao sofrimento da nação. Seus cidadãos, seus aliados políticos e até os homens do “seu” exército são enterrados sem honras de Estado. Seus apoiadores se tornaram conhecidos pelos protestos na frente de hospitais, uma prática tão mórbida que deixa os observadores internacionais incrédulos.
Na ausência de um presidente para organizar a vida emocional, jornais e televisões nacionais assumiram um papel essencial na sociedade pandêmica. Por esta altura no ano passado, cheguei a dizer nesta coluna que os âncoras do Jornal Nacional estavam trabalhando no lugar do presidente.
Nesse contexto, é no mínimo questionável a cobertura laxista das manifestações deste final de semana por alguns meios de comunicação. Todos os grupos que enviaram um repórter terão certamente notado que o cortejo tinha a alma de uma marcha fúnebre. A reunião foi, na sua essência, um recolhimento coletivo, em que pessoas enviuvadas ou órfãs puderam escrever em cartazes os obituários dos seus amados. No qual cidadãos traumatizados conseguiram, pela primeira vez em um ano, fazer valer a sua liberdade de expressão fora do confinamento digital.
Muitas vezes, quem critica a cobertura dos meios de comunicação desconhece a complexidade do noticiário de um grande jornal ou de um canal de televisão. Mas é difícil encontrar uma justificativa para omitir a dimensão cerimonial da manifestação política de sábado (29). Os meios de comunicação que acompanharam intensamente o sofrimento dos brasileiros durante a pandemia, mas optaram por dar pouco destaque à manifestação, fizeram mais do que privar a sua audiência de uma notícia importante. Eles cometeram um erro editorial: não souberam distinguir o luto do protesto.