Marcelo havia acabado de lançar “Ainda Estou Aqui”, a obra que deu origem ao longa de Walter Salles, aclamado por nove minutos no Festival de Veneza no fim de semana, e deu a entrevista para a extinta revista VIP, da Editora Abril. A figura central do romance, autobiográfico como o primeiro, “Feliz Ano Velho”, era Eunice, sua mãe, interpretada no filme por Fernanda Montenegro.
No mesmo condomínio de luxo em que morava entre os bairros de Vila Madalena e Sumaré, na zona oeste de São Paulo, residia Maria Eunice Beyrodt de Paiva. Aos 83 anos, a matriarca dos Paiva não reconhecia mais os filhos, confundia pessoas que já morreram com outras vivas e invertia a todo tempo o gênero de Joaquim, o filho de Marcelo então com pouco mais de um ano. Por vezes é ele, em outras é ela.
O livro, que cruza as histórias de Rubens Paiva, Eunice e Joaquim, foi também um jeito de Marcelo contar a experiência de uma família da classe média alta paulistana alterada por um golpe de estado, como o de 1964. Ele olha para o passado para enxergar heróis diferentes que a esquerda e a direita no país escolheram. Para o escritor, seus pais não são apenas heróis domésticos mas também de uma resistência civil que repudiou os 21 anos de regime militar.
“Muitas pessoas acham que a luta contra a ditadura foi executada pelas forças armadas da esquerda. Não foi. Eles queriam lutar contra o sistema capitalista, da influência americana sobre o continente. O que o Zé Dirceu fez para lutar contra a ditadura, o que a Dilma fez? Nada. Foi presa, torturadaça e passou a ditadura presa. Agora, quem lutou contra a ditadura? Foi o Pasquim, foram os editores Ênio da Silveira e Caio Gracco, o Plínio Marcos, a Igreja Católica, o dom Paulo Evaristo Arns, a ABI, a Folha de S.Paulo, o Estadão, o Jornal do Brasil, a VEJA... O Caetano, o Gil, o Oficina, o Guarnieri, o Augusto Boal, o CPC, o Herzog. A minha mãe.”
Eunice morreu três anos depois dessa conversa —de maneira emblemática, no mesmo 13 de dezembro de 2018 em que o Ai-5 completava 50 anos. Para Marcelo e a sociedade brasileira, estava claro: ela era uma heroína da luta contra a ditadura.
Essas pessoas [como ela] combateram a ditadura, e não a luta armada, que até atrapalhou um pouco.