Adeus, João Paulo Cunha


13/09/2022


Por Joana Tavares, jornalista, filha de João Paulo Cunha.

João Paulo Pinto da Cunha, meu pai, faleceu na última sexta-feira, dia 9 de setembro. Ele lutava contra um câncer, descoberto neste ano de 2022, e pôde conhecer minha filha, sua única netinha, alguns poucos meses antes da passagem.

Ele foi um homem muito amado, uma referência para uma geração de jornalistas, sem dúvida, mas também para muitos leitores, familiares, colegas, amigos. Tem sido muito emocionante as várias homenagens que ele tem recebido, que refletem muito da grandeza que ele foi.

Ele estudou comunicação já tarde, depois de uma trajetória como professor de filosofia (também era formado em psicologia). Meu pai amava ser jornalista. Acho que ali se encontrou.

Em sua casa, e também na de minha avó, sua mãe, sempre teve muito jornal. Sempre teve a cultura de ler jornal, falar de jornal. Meu avô, seu pai, trabalhou em jornal. O avô dele escrevia artigos em jornal. E ele próprio trabalhou em diversas frentes no jornalismo: na saúde pública (tinha um orgulho profundo de ter ajudado a construir o SUS, que defendeu toda sua vida), foi para o jornal Estado de Minas para trabalhar como subeditor no caderno Gerais e rapidamente perceberam que seu lugar era na edição do caderno de cultura. Além dele, editava caderno de TV e o suplemento Pensar, onde publicou suas inúmeras reflexões tão profundas sobre temas da política, da arte, da vida.

Algumas delas foram publicadas depois em seu segundo livro, Em busca do tempo presente. O primeiro livro foi lançado em 2009, Elomar – o cantador do Rio Gavião.

Em alguns desses 14 anos em que atuou no Estado de Minas ele também escrevia com o pseudônimo de Marcel Singer, que era um crítico mais mordaz que o João Paulo, como ele passou a assinar depois, assim, só com o primeiro nome. Ele foi um editor maravilhoso, como é possível ler nos vários depoimentos sobre ele, e sempre muito generoso e gentil. Ele que atendia o telefone ali do caderno, me lembro bem. Ele trabalhava muito, mas adorava.

Redação do Estado de Minas no dia que João pediu demissão. Todos de camiseta branca que era o uniforme dele em todos os momentos.

Saiu do jornal, onde também conheceu Cibele Malafaia, sua esposa maravilhosa por 20 anos, por não aceitar a censura de Aécio Neves. Nessa época, em 2014, eu atuava como editora do Brasil de Fato MG, um jornal popular, e demos a matéria da demissão dele e abrimos espaço para que ele virasse colunista fixo. Ele topou na mesma hora, o que foi uma honra pra nós.

Mas mesmo antes disso ele já escrevia e era muito ativo e companheiro em nosso conselho editorial. Escreveu pro Brasil de Fato até outro dia, e pretendia voltar. Em julho chegamos a falar disso, sugeri que falasse sobre o Chico Buarque. Ele ficou apaixonado com a nova música Que tal um samba?. Não deu tempo de voltar, mas ele ainda lia tudo. E lia pelo site, porque nunca teve rede social. Aliás, isso era outra coisa impressionante nele: não tinha celular, não tinha rede social, mas estava sempre antenado de tudo.

Alguns dos textos dele no Brasil de Fato – e outros – foram publicados em seu terceiro livro,  Penso, logo duvido.

Ele trabalhou depois na rádio Inconfidência e no Instituto BDMG Cultural. Publicou também mais uma obra, num projeto que o encheu de orgulho, que foi organizar junto com Titane e Ludmila Ribeiro um livro sobre a trajetória de João das Neves em Minas Gerais. Estado de Arte ainda vai ser lançado, neste ano.

Teria ainda muito a ser dito sobre a trajetória profissional dele: o exemplo que foi para os alunos, inclusive nas várias palestras que dava, especialmente para os mais novos, começando na profissão. O apoio que dava para os vários tipos de arte, artistas. Os cursos que deu, inclusive alguns que ajudei a organizar, como a primeira aula do Curso de Realidade Brasileira, em que ele falou de Antonio Gramsci e Marilena Chauí, e lotou o porão do sindicato. O exemplo no posicionamento político, sempre tão coerente, corajoso, radicalmente comunista.

Mas quero aproveitar o espaço que ainda tenho para falar de como ele me ensinou e ensina, mesmo nessa partida, a valorizar muito a vida, a buscar a beleza, o conhecimento, o prazer. A curtir mesmo o que é bom, as amizades, a comida boa, a praia, uma cervejinha. Falei isso no velório e repito aqui: eu sei a sorte que eu tive, meu pai foi tudo isso e ainda um grande amigo meu. Na verdade, acho que o melhor amigo que eu tive.

Nossa última conversa foi sobre livros. Ele perguntou o que eu estava lendo. Recitou uns dois ou três poemas do Drummond pra mim e pra minha filha, que riu tanto, mas tanto pra ele. Me falou a ordem dos livros do Machado de Assis. E me explicou (de novo) que Grande Sertão era o melhor de todos os tempos. Eu faço parte dessa comunidade que sente saudade, uma saudade que sei que ainda nem começou, mas que de alguma forma já me transforma, já me faz querer viver mais e melhor, mais de verdade, perto do que é bom, do que importa.