ABI, enlutada, lamenta a morte de Rodolfo Konder


Por Cláudia Souza

02/05/2014


 

Rodolfo Konder participando das eleições na ABI

Rodolfo Konder participando das eleições na ABI

 

O  jornalista, escritor e professor Rodolfo Konder, diretor da representação da ABI em São Paulo, morreu às 10h30, desta quinta-feira, dia 1º de maio, aos 76 anos, no Hospital Beneficência Portuguesa. Ele estava internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), há cerca de 20 dias em tratamento contra um câncer. O corpo de Konder foi cremado às 17h, no Crematório Horto da Paz, em Itapecirica da Serra, interior de SP, em cerimônia restrita aos familiares.

Um dos maiores defensores das liberdades e destacado militante político contra a ditadura militar de 1964, Konder nasceu em Natal (RN), no dia 5 de abril de 1938, filho de Valério Konder, que foi dirigente do PCB, e de Ione Coelho. Era irmão do filósofo Leandro Konder e de Luíza Eugênia Konder. O jornalista deixa mulher e um filho.

Leandro Konder filiou-se ao Partido Comunista em 1961, e, em função da militância política, foi perseguido por agentes da ditadura. Durante o exílio, passou pelo México, Peru, Uruguai, Chile, Argentina, Canadá e EUA.  O retorno ao Brasil contou com a ajuda do jornalista e militante comunista Ênio Silveira, dono da editora Civilização Brasileira, e amigo de Valério Konder.

Na clandestinidade,  Konder começou a fazer traduções para Ênio Silveira. Pouco depois, conseguiu uma vaga de redator na agência de notícias Reuters, onde trabalhou durante quatro anos e se encantou pelo jornalismo. Ao longo da carreira, passou pelas redações das revistas “Realidade”, “Singular Plural”, “Visão”, “Isto É”, “Afinal”, “Nova”‘,  “Playboy”, “Revista Hebráica” e “Época”; além de diversos jornais, emissoras de rádio e de TV. Durante quatro anos foi editor-chefe e apresentador do “Jornal da Cultura”, na TV Cultura de São Paulo, e colaborador permanente de “O Estado de São Paulo”, durante dez anos.

Publicou artigos nos jornais “Movimento”, “O Diário”, “Voz da Unidade”, “Folha de São Paulo”, “Jornal da Tarde”, “Gazeta Mercantil”, “Diário Popular”, “Pasquim”, “O Paiz”, “LA Calle”, “El Clarin”, “História”, “Venus”, “Opinião”, “Povos e Países”, “Jornal do Brasil”, “Jornal da Semana”, “Leia Livros”, “Shopping News”, “Américas” e “Shalom”.

Na área acadêmica, lecionou na Faculdade de Jornalismo da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) durante um ano. Foi conselheiro da União Brasileira de Escritores e publicou dezenas de livros, entre os quais “Cadeia para os Mortos”, “Tempo de Ameaça”, “Comando das Trevas”, “De Volta, os Canibais”, “Anistia Internacional: uma Porta para o Futuro”, “O Veterano de Guerra”, “Palavras Aladas”, “O Rio da nossa Loucura”, “As Portas do Tempo”, “A Memória e o Esquecimento”, “A Palavra e o Sonho”, “Hóspede da Solidão”, “Labirintos de Pedra”, “Rastros na Neve”, “Sombras no Espelho”, “Cassados e Caçados”, “Agonia e Morte de um Comunista”, “A Invasão”, “As Areias de Ontem”, “Educar é Libertar” e “O Destino e a Neve”.

O talento de Konder foi aplaudido e reconhecido com os prêmios Jabuti 2001 pelo livro “Hóspede da Solidão”, Monteiro Lobato (1979), Vladimir Herzog (1982), Hebraica (1995), ECO (2002) e Borba Gato (1996).

Rodolfo para capa internamenorABI

Nos anos 1980, Konder ocupou os cargos de presidente e de vice-presidente da Seção Brasileira da Anistia Internacional, participou de seminários, encontros e congressos no exterior, como jornalista e escritor, e cumpriu importantes missões diplomáticas.

Nos anos 1990 e 2000 atuou nas funções de Secretário Municipal da Cultura, Conselheiro da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura), Diretor da Bienal de São Paulo, Presidente da Comissão Municipal para as Comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, Diretor do MASP e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) em São Paulo.

Em entrevista ao jornalista Vitor Sznejder, publicada no site Observatório da Imprensa,  Rodolfo Konder falou sobre sua trajetória profissional e pessoal.

Leia abaixo a íntegra de matéria:

Vitor Sznejder (*)

“Jornalista, escritor, ativista político, Rodolfo Konder foi testemunha do assassinato sob tortura, em 1976, do colega Vladimir Herzog. Seu corajoso depoimento a esse respeito, ainda em pleno regime ditatorial, ajudou a mudar os rumos da história recente do Brasil. A história de sua vida renderia um roteiro cinematográfico, cheio de aventuras, exílios e contradições: imperdoavelmente, para muitos dos seus ex-companheiros do Partido Comunista, Konder foi secretário de Cultura de São Paulo nos governos Maluf e Pitta, de quem fala nesta entrevista, concedida em 7 de março de 2001. Aborda, também, o processo de desintegração da personalidade do amigo e também jornalista Pimenta Neves que, há um ano, assassinou a tiros a namorada.

Onde você nasceu?

Rodolfo Konder – Em Natal, no Rio Grande do Norte. Meu pai, Valério Konder, era médico e estava desenvolvendo um projeto de saúde pública para o governo de lá. Mas era também estudioso de História, especialmente portuguesa e brasileira. Ele foi dirigente do PCB, candidato a senador. Esteve preso na ditadura Getúlio Vargas. Ficou dois anos na cadeia, ao lado do Graciliano Ramos. Em “Memórias do Cárcere”, aparece várias vezes. Um capítulo do livro narra uma batalha travada por ele dentro da prisão para acabar com os percevejos, coisa típica de médico sanitarista. O Graciliano Ramos era amigo dele e depois me tornei grande amigo do filho do Graciliano, o Ricardo.

E seu irmão, Leandro?

R.K. – Meu irmão, Leandro Konder, é dois anos e pouco mais velho. Ficava em casa lendo, enquanto eu ia para a rua jogar futebol. Tem mais de 30 livros publicados e é professor de Filosofia na PUC do Rio. Era do Partidão também, agora está no PT. Éramos todos da linha do eurocomunismo, discípulos dos italianos. Nós vínhamos da direita do Partidão, mas estávamos mais na direção da social democracia…

O socialismo, então, é uma tradição de família?

R.K. – Não, meu avô era um tremendo reacionário. Alemão, com disfarçadas simpatias pelo nazismo; o único que se tornou marxista foi papai. A partir daí, alguns irmãos dele também se bandearam para a esquerda. O velho tinha uma influência muito grande. Lembro-me de um dia em que estávamos fazendo panfletagem ele era sempre candidato…a deputado, senador, e a gente fazia campanha. A polícia foi lá em casa (o velho foi preso mais de vinte vezes). Quem o tirava da cadeia era o Evandro Lins e Silva, que era casado com a irmã dele, minha tia. O Leandro havia feito panfletagem na favela. O velho enfrentou a polícia, era um homem corajoso. Eu, morrendo de medo. De repente, papai diz: “Rodolfo, pegue sua pasta e vá para o quarto dormir”. E apontou uma pasta que não era minha. Eu ia protestar, mas peguei a pasta e levei embora. Estava cheia de documentos secretos do Partidão. O Leandro e eu nos tornamos dissidentes. Ele, nunca. Era um comuna dos antigo. Um dia ele disse: “meus filhos, se vocês tiverem alguma dúvida, basta olhar na direção da estrela do Kremlin, que a dúvida se desfaz”. Quer dizer, uma relação quase religiosa. (sorriso)

Você cresceu no Rio, não é?

R.K. – Em Ipanema, bairro que até hoje é uma grande paixão. Eram os anos 40 e 50. A praia pouco freqüentada, mar aberto…nós gostávamos de pegar tatuí na areia, levar para casa e comer com arroz. Os carros só passavam na rua Nascimento e Silva, em Ipanema, duas ou três vezes por dia, então a gente jogava pelada na rua. Íamos muito à praia. Eu era moleque, fingia que ia estudar, porque minha mãe dormia depois do almoço(risos).

Quem eram seus companheiros, nessa época?

R.K. – Uns dez garotos que pegavam jacaré, uma meninada pobre. Quando Ipanema começou a crescer, anos mais tarde, eles foram para o subúrbio e eu os perdi de vista.

E trabalho, quando é que entra nessa história?

R.K. – Meu primeiro emprego foi no escritório de advocacia de um tio , Milton, já falecido. Fiquei pouco tempo. Arranjei depois um cargo no Citibank, e trabalhei um ano lá, pelo salário e também porque descobri uma funcionária chamada Florita, por quem, evidentemente, me apaixonei. Tivemos um namoro, mas depois ela desfez porque achava que eu não tinha futuro, era um aventureiro, no que tinha toda a razão. Um dia, já cansado daquilo, bebi umas cervejas com meus amigos e fui ao banco bêbado, me demitir. Entrei para o CPOR e fiquei dois anos; sou da reserva de infantaria, “pé de poeira”. Quando saí de lá, fiz concurso para a Petrobrás, passei e comecei a trabalhar como assistente administrativo.

Foi lá que você começou sua miltância política?

R.K. – Fora as panfletagens, foi. Eu trabalhava no escritório do centro do Rio. Depois fui transferido para Caxias, na Reduc. Comecei a trabalhar numa fábrica com 1500 funcionários. Imediatamente alguém me procurou. “Você é o Rodolfo Konder, filho do Valério Konder? Nós estamos organizando o Partidão aqui dentro e queríamos saber se você topa nos ajudar.” Aí entrei para o Partido em 1961. Começamos a organizar e de repente eu virei “comissário do povo”. Era o centro da organização do partido, até por causa das influências do velho, que conversava muito conosco sobre política.

Tinha muita gente do Partidão na Reduc?

R.K. – Organizamos o primeiro grupo com umas 10 pessoas, que foi o ponto de partida. Depois, nós tínhamos uns 150 comunas organizados em bases. Essas bases elegiam seus representantes no comitê de empresa e eu era do comando desse comitê.

Como era a atuação lá?

R.K. – Dominávamos a refinaria. Éramos 850 pessoas organizadas, num conjunto de 1500. Chegávamos nas assembléias e tínhamos as propostas prontas. Comandávamos as votações. Tinha me tornado um dirigente sindical importante, apesar de ser muito jovem. Por exemplo, quando os trabalhadores em petróleo resolveram mandar uma comissão a Brasília para discutir com o Jango e propor a ele co-gestão na Petrobrás, foram três dirigentes sindicais representando o país inteiro. Eu era um deles. O Fernando Autran, o Cid Salgado e eu. Isto foi em 63, se não me engano.

E como foi essa audiência?

R.K. – Tensa. O Jango nos recebeu irritado, porque achava que nós íriamos fazer greve. Ele queria tirar o Francisco Mangabeira da presidência da Petrobras, porque não era da confiança dele, mas o Chiquinho estava bem conosco. Ele achou que queríamos fazer greve para manter o Chiquinho. Então, na hora que entrou na sala, arrastando a perna — porque ele mancava de uma perna —, ele foi dizendo: “Vocês vem aqui para me ameaçar, e eu não admito isto porque sou um Presidente ligado aos trabalhadores. Sou um aliado e vocês, em vez de me dar apoio, querem me ameaçar”! Eu perdi a voz, varado de medo. O Cid também, mas, felizmente, o Autran, mais velho, enfrentou o Presidente: “O senhor está enganado. Nós não viemos aqui ameaçá-lo. Viemos para trocar idéias. Achamos que o senhor está querendo substituir o presidente da Petrobrás por uma pessoa da sua confiança e achamos isso perfeito. Nós entendemos”. Aí ele relaxou. Deu um sorriso e disse: “Vamos sentar aqui”. Sentamos em um conjunto de sofás de couro e ele chamou seu auxiliar, pediu para trazer café. Então a conversa se estendeu e o Autran disse : “Agora, Presidente, nós achamos que é justo o senhor nomear um presidente, mas achamos também que os três diretores – a direção era formada pelo presidente e por três diretores, sendo o presidente com direito a dois votos, ou seja, menos que os votos dos três diretores – devem ser dos quadros da própria empresa, com capacidade inquestionável e indicados ou apoiados pelos sindicatos”. Era a proposta da co-gestão. O Jango puxou um bloco que estava sobre a mesa, tirou uma caneta do bolso e disse assim: “Nomes”. Tínhamos três nomes no bolso. A reunião acabou numa boa e na semana seguinte ele nomeou dois e deixou a terceira vaga em aberto. Depois nomeou um cara dele para ficar com a maioria, mas pela primeira vez os sindicatos tinham dois diretores da Petrobrás. Um era amigo meu, Hugo Régis dos Reis.

Quando veio o golpe em 64, você foi preso logo de saída?

R.K. – Na Petrobrás, nunca fui preso. Recebemos a notícia de que tinha havido um levante militar em Minas. Então, nos reunimos. Tiramos um manifesto violentíssimo e fomos à rádio Mayrink Veiga, em nome dos trabalhadores do petróleo, ler o manifesto. Entre outras coisas dizia o seguinte: “Nem uma só gota de petróleo da Petrobrás servirá aos tanques da reação”. Então, os tanques da reação vieram e passaram por cima de nós. Literalmente! Lemos o manifesto e fui para casa dormir. Quando acordei, eles já tinham tomado o poder e eu vi na televisão as comemorações pela queda do Jango, que já tinha fugido.

E o que você fez, então?

R.K. – Liguei para o sindicato e consegui falar com o Cid, que disse: “Konder, estou de passagem aqui para pegar uns documentos e vou desaparecer. Faça a mesma coisa. Suma”. Fiquei alguns dias escondido na casa de parentes no Rio, mas eu era uma presença constrangedora — perseguido e procurado. Fui caçado. As pessoas me escondiam, mas com medo. A área de petróleo era considerada de segurança nacional; eles foram duros: invadiram o apartamento do meu sogro. Minha mulher estava grávida, último mês, e quase perdeu o filho. Eles ameaçaram a família. Então, resolvi me apresentar. Fui à Petrobrás. Só que, como estava escondido, tinha perdido a noção do tempo. Cheguei à sede e disse: “Vim falar com o senhor Leopoldo Miguez de Mello”. Era o novo diretor, indicado pelo golpe, e eu o conhecia havia muito tempo. Um cara reacionário, mas parecia decente. O problema é que era sábado e ele só voltaria, claro, na segunda-feira. Fiquei parado, sem saber o que fazer. Então veio um contínuo fardado e disse: “O que você está fazendo aqui?” Eu respondi: “Vim me entregar”. E ele: “Não faça isto, a barra está muito pesada, especialmente para os dirigentes sindicais.” “Bom, o que vou fazer? Não tenho onde me esconder. Minha família está ameaçada”. Ele disse: “Vamos lá em casa e pensamos o que fazer”. Pegamos um ônibus e fomos para o subúrbio. Ele morava numa vila. Nem sei quem era o cara. Era simpatizante. Como eu precisava que eles deixassem minha família em paz, me ocorreu pedir asilo numa embaixada. Fui para a do México, que ainda era na praia do Flamengo. Fomos de táxi, eu e o simpatizante. Descemos a um quarteirão da embaixada. Fomos caminhando, pegamos o elevador até o sexto andar e descemos para ver se tinha alguém. Ele ficou na escada e eu apertei a campainha. Um funcionário abriu a porta. “O que o senhor deseja?” Eu respondi: “Estou sendo perseguido por razões exclusivamente políticas e quero a proteção do governo mexicano”. Ele me olhou e disse: “O senhor faça o favor de entrar que vou chamar o embaixador.” Olhei para trás, dei tchau para ele na escada e nunca mais nos vimos. Só sei que se chamava Luís Carlos.

Então, você conseguiu sair do país logo depois do golpe?

R.K. – Fiquei um mês e tanto dentro de um apartamento. Depois, fomos transferidos para o consulado. Éramos 60 pessoas. Ficamos lá, no Morro da Viúva, até o governo nos dar o salvo-conduto. Dormíamos em camas de armar e havia muita briga. Tinha um grupo de marinheiros ligados ao Max da Costa Santos, radicalíssimos. Depois, foram todos para Cuba treinar guerrilha e morreram quando voltaram ao Brasil. Eles consideravam que bancários, petroleiros, intelectuais, eram todos uns burgueses. Depois de várias situações constrangedoras, um dia eles decidiram mostrar que estavam vivos. Alguém ia sair de lá com a missão de afundar o porta-aviões Minas Gerais. Escolheram um cara que, evidentemente, se recusou. Então o cabo Anselmo se ofereceu como voluntário para a missão e saiu de lá. Foi preso e, depois, soube-se que ele era agente duplo.

Como ele era?

R.K. – Ele era uma figura estranha, muito radical, esquisito. Dançava se requebrando, com os olhos fechados, em êxtase. Depois se confirmou que era homossexual. Mas neste episódio tínhamos um grupo que ficou muito unido até chegar notícia de que haviam começado a conceder o salvo-conduto. Nosso grupo saiu em dois carros cercados pelos veículos da polícia. Fomos para o aeroporto com sirene tocando e eles nos botaram dentro do avião.

Por que você escolheu exatamente a Embaixada do México?

R.K. – Porque é um país com tradição de conceder asilo político. Fiquei lá alguns meses com esses 70 brasileiros, hospedados em espeluncas e sem ter o que fazer. Então os bancários conseguiram que o ministro do Exterior do Uruguai, que era bancário, autorizasse a transferência de asilo do México para o Uruguai, mas só para os bancários. E me colocaram na lista como bancário. O governo brasileiro não queria ninguém se transferindo para país limítrofe, com medo que a gente entrasse pela fronteira que, aliás, foi o que eu fiz então não podíamos sobrevoar território brasileiro. Saímos do México, fomos para o Peru, depois Chile, Argentina e Uruguai, onde o sindicato dos bancários nos mantinha num bom hotel, com uma comida ótima, porque o ministro era amigo. Vivíamos maravilhosamente.

O Jango e o Brizola estavam lá nessa época, não é?

R.K. – Entre outros. E nós resolvemos ver se conseguíamos aproximar os exilados brasileiros. Fomos visitar o Jango, Brizola, Darcy Ribeiro. Conseguimos organizar uma reunião de todos – éramos bons nesse troço, mas foi um fracasso total, porque ninguém se entendia. Cheguei à conclusão de que aquilo não ia dar em nada e que era melhor voltar para o Brasil. A viagem foi de Rivera, que fica colada a Santana do Livramento, no lado brasileiro, a Porto Alegre, de trem, e de ônibus para São Paulo. De lá, para o Rio, numa kombi do Ênio Silveira, dono da Civilização Brasileira.

Viagenzinha complicada…

R.K. – Eu ainda estava clandestino, mas comecei a fazer traduções para o Ênio, que era muito amigo de papai. Depois surgiu uma vaga de redator na agência Reuters, onde fiquei quatro anos e me tornei jornalista.

E você continuava no Partidão?

R.K. – Voltei aos poucos a fazer política sem ser importunado, mas já começavam a se evidenciar as minhas divergências com relação ao Partido porque, nesse período, a Tcheco-Eslováquia havia sido invadida. Eu tinha grande simpatia pela experiência de socialismo que se desenvolvia por lá. Quando invadiram, me senti traído. Escrevi artigos violentos, quase fui expulso do partido… Estávamos em 68, um período de grande agitação, quando aceitei o convite do Milton Coelho da Graça para vir para São Paulo, trabalhar na Realidade, onde fiquei durante dois anos, antes de ingressar na revista Visão, com Vladimir Herzog, Luís Weis e Marco Antônio Rocha. Foi neste período que aumentou a repressão. Durante os primeiros tempos eles se concentraram mais no pessoal da guerrilha; o Partidão tinha ficado meio de lado, mas havia um clima perigoso.

Vem daí, então, o contato com Vladimir Herzog?

R.K. – Viajei pela Visão, fui para Bruxelas, depois Paris, Nova York e Las Vegas. Quando voltei a São Paulo, tinha uma recepção no consulado inglês, mas não fui porque estava cansado da viagem. Nessa recepção, Marco Antônio Rocha soube que eu iria ser preso. Não deu tempo de ele me avisar…. Fui preso antes deles falarem comigo, às seis da manhã. Tocaram a campainha; fui estremunhado abrir a porta, eram dois policiais. “O senhor está preso, faça o favor de nos acompanhar”. Já no carro me colocaram um capuz preto. Chegando no DOI-Codi, obrigaram-me a tirar a roupa, tiraram umas fotos, me deram um macacão do Exército, fizeram-me tirar os cadarços do sapato, levaram-me para o andar de cima e me largaram alguns dias. No primeiro interrogatório, encapuzado, fui levado por um carcereiro que chamavam de Marechal. Cheguei, sentei. Um cara na minha frente, que eu não via, começou a me interrogar. E eu fui argumentar com ele. O cara falou logo: “Seu comuna filha da puta, você está querendo me fazer perder tempo com este blá-blá-blá. Então agora vai ver uma coisa”. Levantou-se e disse. “Marechal, manda vir uma equipe e trazer a pimentinha!”

Pimentinha?

R.K. – Era a máquina de choque elétrico. Eu pensei que era pimenta mesmo para enfiar em algum lugar. Instalaram a máquina, prenderam os fios nas mãos e nos tornozelos e começaram a me dar choques elétricos na orelha, nas costas, na espinha. Depois de algum tempo, me deram porrada.

O que você sente numa hora dessas?

R.K. – Pânico! Você grita e o grito provocado pelo choque elétrico vem das entranhas. Você não se controla, me sujei todo. Quando terminaram, ficaram lá discutindo onde iriam almoçar. Então me levaram para o andar de baixo. À tarde, voltei para essa mesma sala. O cara disse assim: “Quando é que você quer que eu chame a equipe?” Eu respondi: “O que você quer saber?” Então abri o jogo. Queriam saber quem integrava nossa base.

Você falou?

R.K. – Falei os nomes de alguns, os mais notórios. Eu tinha que dizer porque era um jogo de gato e rato. Achava que já estava preparado, mas não estava. O que eu percebia era o seguinte: as informações básicas eles já tinham, as periféricas, não; então, foi possível poupar algumas pessoas. Eles não mencionaram o Vlado (Vladimir Herzog), mas já tinham ido procurá-lo no dia anterior e combinaram que ele se apresentaria no dia seguinte. Depois do interrogatório, voltei para a sala de espera.

Você estava lá quando o Vlado morreu. Como foi?

R.K. – Vou contar. No dia seguinte, o Vlado se apresentou; eu o reconheci pelos sapatos. Ele foi levado para o interrogatório. Daqui a pouco vieram nos chamar, eu e o Duque Estrada. O cara que o interrogava era um sargento da Marinha com uma âncora tatuada no antebraço esquerdo, na parte interna. O tenente já tinha me interrogado. Eu sabia que o cara era violento: um tal de Pedro Mira. O cara falou: “Ele está negando as informações de que era da base de vocês. Por favor, vocês digam a ele que, se continuar negando, vai entrar no cassete. Dissemos. E o Vlado nos reconheceu pela voz. Estava encapuzado e disse assim: “Não sei do que vocês estão falando, nunca fui do Partidão”. O sargento nos dispensou, voltamos para a sala de espera e ele começou a gritar. Primeiro foi porrada, depois choque elétrico — os gritos são diferentes. Eles aumentaram o rádio para disfarçar. Parou tudo de novo. Depois de um tempo, fui chamado lá dentro. Entrei e ele estava sentado numa cadeira dessas de escola, escrevendo. O cara falou: “ele está querendo se lembrar do nome de alguém e não consegue.” “Estou muito tenso, nervoso, mas estava querendo me lembrar do nome daquele cara de cabeça grisalha”, disse Vlado . Era o Argeu, um veterano jornalista que só ia de vez em quando às reuniões. O nome dele ainda não tinha aparecido, então eu disse assim: “Não, Vlado, acho que você está enganado”. “É, vai ver eu me enganei. Estou muito nervoso”. Então me mandaram embora de novo. Mas o Argeu ficou fora. Não aconteceu mais nada. Horas depois, nos tiraram da sala de espera e nos levaram para o andar de cima, supostamente para reconhecer algumas fotos, e eu não conhecia ninguém das fotos. Retiraram todos da sala de espera porque era por ali que eles tinham que tirar o corpo do Vlado. Ele já havia morrido.

O que você acha que aconteceu dentro da sala?

R.K. – Estou convencido que o Vlado morreu depois de ter assinado uma confissão que era evidentemente ditada por eles, porque começava assim: “Fui aliciado para o Partido Comunista pelo Rodolfo Konder”. A gente não usava esta expressão. O que eu acho é que, depois de ter feito aquilo, ele teve um momento de indignação, porque era uma pessoa muito ética, e rasgou o papel. Então os caras bateram nele de novo, mas sem técnica, sem cuidado, acho que aí ele morreu. Segundo o pessoal que fez a lavagem do corpo, ele teria batido com a base da cabeça no parapeito da janela. Simularam um suicídio; ficaram em pânico lá dentro e tomaram muito cuidado porque as coisas podiam repercutir muito mal. O cara que comandava aquilo chamou uns cinco ou seis jornalistas para dizer que Vlado tinha se suicidado. Disseram que sabiam que ele era agente da KGB. O Paulo Sérgio Markun protestou e o cara deu uns gritos com ele: “Vocês não sabem de nada, o país está cheio de espiões, até no governo tem espiões comunistas e tem mais o seguinte: nossa função é esta, acabar com a subversão, quem chega aqui é para levar porrada: qualquer pessoa, entrou aqui leva cassete, pode ser até o Presidente da República.”

Mas o Geisel acabou intervindo em São Paulo.

R.K. – Havia uma luta evidente entre a direita e a ultra-direita. O Geisel, que era direita, queria abrir, mas de forma lenta gradual e segura. E o pessoal do Segundo Exército queria impedir a abertura. O aparelho da repressão estava partindo para o ataque. Era uma briga entre dois elefantes — como diz o indiano, quando dois elefantes brigam quem sofre é a grama. Nós éramos a grama. Eles ficaram assustados. Chamaram para dar explicações e nos encaminharam para o Dops, onde já não havia tortura. Fiquei numa cela com 15 pessoas. Fui fichado pelo Dulcídio Wanderley Boschilla, que era juiz de futebol e funcionário do Dops. Ele nos disse para ficar tranqüilos que lá não tinha tortura. Fiquei só alguns dias. Quando fui solto, o pessoal me procurou. Combinamos que eu iria fazer um depoimento. José Carlos Dias era meu advogado, contratado pelo (empresário) Henry Maksoud, que foi muito solidário comigo, não queria me demitir. Fui demitido da TV Bandeirantes, onde tinha um programa semanal, mas o Maksoud não queria me demitir da Visão. Mas eu disse: “Eu quero que o senhor me demita, porque vou fugir pela fronteira e preciso de dinheiro”. Ele ficou decepcionado com os amigos militares, quando viu que eu ainda tinha marcas de queimaduras das torturas, porque os caras diziam a ele que não havia tortura. Fui no escritório do José Carlos Dias e eles formaram uma espécie de comissão: Alfredo Peres da Silva, o Padre Rolim, Barbosa Lima Sobrinho, representantes da OAB, Hélio Bicudo. Fiz um depoimento de horas, contando todos os detalhes do que aconteceu. Eles registraram, eu assinei e o José Carlos guardou no cofre do escritório para divulgar no momento que julgássemos oportuno. Foi o primeiro documento que incriminava claramente os caras, deixava claro que o Vlado não tinha se matado.

E você continuou no país depois disso?

R.K. – Eu comecei a receber cartas e telefonemas do braço armado da repressão. Saí de casa, comecei a dormir na casa das pessoas. Virei de novo um inconveniente. Fui embora. Em Foz do Iguaçu, atravessei o rio Iguaçu clandestinamente e do outro lado tomei um táxi para Posadas, onde peguei um avião e fui para Buenos Aires. Isso foi no começo de 76. Eu ia ficar em Buenos Aires, mas o Ferreira Gullar e outros amigos que estavam lá me disseram que ia ter um golpe militar na quinta-feira da outra semana. Tinha saído no (jornal) Clarin a notícia do meu desaparecimento aqui no Brasil. Então fui para os Estados Unidos, via Peru, onde o Alberto Dines conseguiu emprego para mim. Antonio Alberto Prado estava saindo da Rádio Canadá para assumir a chefia do escritório da Visão em Washington, posição para a qual eu o havia indicado! E eu fui para Montreal, para o lugar que era dele.

E como era a vida em Montreal?

R.K. – Não era ruim. Eu fiz um teste de locução em inglês e francês, fui aprovado e assumi o lugar dele. Era um bom salário e trabalhava de três a quatro horas por dia. Fiquei dois anos no Canadá. Comecei a fazer contatos com a Anistia Internacional (da qual tornou-se depois presidente no Brasil), funcionava como correspondente da Visão e do Diário de Lisboa.

Você já tinha rompido com o Partido quando saiu do Brasil?

R.K. – No Canadá, eu ainda mantinha uns contatos, mas quando o Afeganistão foi invadido, de novo me manifestei contra e desta vez eles me rebaixaram: deixei de ser membro do comitê de jornalismo para ser quadro de base. Ficamos um certo tempo nos reunindo porque o Muro de Berlim caiu na cabeça da gente também, ficamos órfãos…acabou o socialismo. Então, o que vamos fazer? Este grupo ganhou uma certa presença política. Nos manifestamos contra o maniqueísmo, na eleição do Collor, e depois repudiamos o patrulhamento na eleição do Maluf. Não apoiamos o Maluf, mas repelimos o patrulhamento. Ele, esperto, gostou do manifesto.

Foi por causa disso que você foi parar na Prefeitura, na gestão do Maluf?

R.K. – O Maluf ganhou e mandou um recado para mim. Queria que eu fosse secretário de Cultura dele, em 1992. Os dois primeiros convites, eu recusei. Mas aceitei conversar… Era a terceira sondagem; ele chegou para mim e disse: “Konder, eu entendo a sua dúvida e sua relutância, mas eu quero”. Foi na casa do Assef, na presença do Carlos Tavares, e o Maluf me disse: “Konder, você vai montar sua equipe, definir a política cultural e eu dou todo o apoio, inclusive em termos orçamentários. Você vai ser o prefeito da cultura”. Não topei com alegria, topei me sentindo dividido e chateado por sair da TV Cultura, mas fui.

E você se arrependeu, afinal?

R.K. – Maluf foi corretíssimo comigo, tenho que dizer isto. Sabe por quê? Eu não seria ético, se não dissesse. Montei minha equipe e ele não me indicou uma única pessoa. Ele era o prefeito! Eu defini a política cultural, suprapartidária, e ele aceitou. Me deu sempre apoio, o orçamento foi plenamente respeitado e era excelente — 120 milhões de dólares por ano! Neste período ele montou o PPB, eu não entrei, me mantive independente e ele sempre me respeitando, me dando algumas dicas boas…

Por exemplo?

R.K. – “Konder, você tem que dormir com os dois olhos abertos; você está cercado de gangsters”. Ele tinha razão, na Prefeitura, na Secretaria, em tudo. Depois ele me disse uma coisa que parece piada, mas é um conselho sério: “Konder, você é um sujeito trabalhador, honesto, mas tem um problema: não fala palavrão. Você tem que falar palavrão.” (risos) Era a propósito de um orçamento que tinham feito para mim na Secretaria de Obras e estava super-estimado. Ele percebeu porque é engenheiro. Aí ele me chamou e disse para eu ligar para o pessoal da secretaria. Eu e ele sozinhos no gabinete, ele falou: “Repete comigo, Konder: (pausadamente) os caras que estão fazendo o orçamento para vocês são uns filhos da puta”. (risos) Eu repetia. Ele tinha razão, depois endureci um pouco meu estilo.

E afinal, o Maluf roubou ou não?

R.K. – Dizer que alguém é ladrão é complicado se você não tem elementos sólidos para isso. No caso do Maluf, por exemplo, ele já era rico quando foi eleito prefeito e durante o período em que trabalhei com ele, quatro anos, nunca tive da parte dele nenhum indício, nada que sugerisse que ele estava roubando. No convívio com os outros secretários nunca tive nenhum sinal e trabalhávamos bastante lá. Ele fez um secretariado também bastante eclético politicamente.

E qual é, hoje, a sua opinião sobre ele?

R.K. – O que posso dizer é o seguinte: não entrei para o partido dele, mas eu o respeito porque tivemos uma relação boa durante os quatro anos que trabalhamos juntos. Quando chegou no fim da gestão, não nos esqueçamos disso, ele tinha altos índices de aprovação. Saiu da Prefeitura com aprovação tão grande que elegeu o Pitta. Ele elegeria um poste. O Pitta era uma continuidade, uma seqüência do governo Maluf. Por isso ele me pediu para continuar durante os dois primeiros anos. Comecei a enfrentar dificuldades com as finanças, que eu não tinha antes na época do Maluf. Nos últimos dois anos houve o naufrágio.

E como você se segurou, na sua área?

R.K. – Consegui manter a Secretaria à margem. Reduzi muitas coisas, cortei os projetos mais caros, mas mantive a Secretaria em ação com uma média de 500 eventos por semana. Dois mil por mês. Sem apoio! Formamos um grupo de secretários que se reunia com regularidade, fora da prefeitura, todos pensando em sair, mas achando que seria como ratos abandonando o navio. Fomos, cada um, tentando preservar sua área e seu espaço. Entrei em choque com vereadores, tive uma briga séria com Hanna Garibe, líder do Pitta na Câmara. Depois me lembrei de um provérbio árabe: “Senta à beira de um rio porque um dia os cadáveres de seus inimigos vão passar na correnteza.” Depois, vi o cadáver do Hanna Garibe.

Que balanço você faria dessa experiência do governo Pitta?

R.K. – Foi uma experiência ruim, deprimente. Tinha uma equipe com 3.500 funcionários. Eles foram muito leais a mim por oito anos, pessoas que trabalhavam muito e honestamente. Eu não podia jogá-las às traças. No momento que eu saí pela primeira vez, entrou o Nilton Travesso, que gostava muito de mim e manteve toda a minha equipe. O único que ficou desempregado fui eu. Do Maluf tenho boas lembranças porque a relação foi boa e ele foi correto comigo.

E do Pitta?

R.K. – Tenho más lembranças. Porque a gestão foi muito ruim. Não vou entrar na questão da honestidade, porque precisaria comprovação. O Pitta não tem vocação para o exercício do poder. Em política, se você não diz palavrão (seguindo os conselhos do Maluf), surge um vazio. No caso dele, a gente sentia que não tinha comando. Gosto do pensamento do Emerson: “Precisamos atrelar o nosso arado a uma estrela.” Ou seja, o trabalho tem que perseguir um sonho. Qual era o sonho do Pitta? Ninguém sabe.

E o socialismo, continua o seu sonho?

Eu digo sempre que não larguei o socialismo, ele é que me abandonou. Porque o socialismo morreu, lamento. Fui ao enterro, chorei lágrimas de esguicho. Mas aquilo que nós achávamos que era um sonho, era um pesadelo. Milhões foram mortos. É difícil até você saber quem matou mais. Se Hitler ou Stalin. Então, aquela utopia eu abandonei. Não abandonei o sonho. Não deixei de atrelar o meu arado a uma estrela. Porque na TV Cultura e na secretaria, nestes oito anos, eu trabalhei sempre com o norte. E qual era? Primeiro, a valorização da diversidade. Não é só aceitação. A valorização, a diversidade solidária. Depois, o respeito, o compromisso maior com os valores e princípios claramente universais, que integram uma cultura planetária que marca o mundo pós-guerra fria. Como por exemplo, a defesa da democracia, a garantia da liberdade, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade da mulher, a defesa da ecologia. São valores e princípios claramente universais. Nenhuma cultura justifica a agressão a eles.

Mudando de assunto, você é amigo do jornalista Pimenta Neves, protagonista de um assassinato… [que completou um ano em agosto de 2001, quando esta entrevista era editada]

R.K. – É verdade. Estávamos sempre juntos. Em Washington, ficava na casa dele. Depois ele voltou para o Brasil e mantivemos contato. Ele ia à minha casa. É uma pessoa muito introspectiva. E muito preparado. Não é só jornalista. Se formou em Economia nos Estados Unidos, era alto funcionário do Banco Mundial, que representou em diversas missões internacionais. Veio para o Brasil dirigir a Gazeta Mercantil. Depois, foi para o Estado de S. Paulo. É uma cabeça privilegiada. Mas, ao mesmo tempo, é um homem difícil e muito fechado. Eu era um dos poucos amigos com quem ele conversava mais. Acompanhei essa crise toda, esse processo de fragmentação e desintegração, porque ele começou a me falar da moça. E eu sentia que era uma relação estranha, porque ela era uma pessoa de outro universo, com outras preocupações. Enfim, um casamento esquisito. Alguma coisa não se encaixava. Ele passava longos períodos em depressão. Chegou a falar em suicídio. Uma das irmãs dele chegou a me procurar, achando que ele ia se matar, e pediu que eu ajudasse porque era uma das poucas pessoas que ele ouvia. Falávamos muito por telefone. Fui almoçar com ele duas ou três vezes no (jornal) Estado. Ele esteve lá na Secretaria também. Ele sempre me dizia que estava deprimido. Mas teve um dia em que estava particularmente deprimido. Eu disse a ele: “Pimenta, eu sei que os homens da nossa geração têm certas dificuldades em ir ao analista… Mas hoje a medicina moderna já diagnosticou desequilíbrios químicos. De repente, com uma pastilha de lítio você resolve”. Aí ele disse: “Eu já tomei uns remédios do médico que o Ruy Mesquita me indicou, mas só piorei”. Eu insisti: “Mas, Pimenta, até encontrar a dose certa você tem que continuar tomando”. A resposta dele ficou gravada na minha memória: “Depois, eu também não quero ninguém me dissuadindo de fazer o que eu tenho que fazer”. Aí eu disse: “O que é isso? Você tem que se tratar!” Liguei para a irmã dele e disse que ele ia se matar. Poucos dias depois, ele mata a moça.

Quer dizer que na verdade…

R.K. – Ele estava pretendendo matá-la. Depois houve a informação de que ele tentou se matar com remédios. Mas naquele momento a informação que eu tinha era de que ele havia matado a moça.

E agora?

R.K. – Deixou de ser membro da minha tribo. Um membro da minha tribo não mata ninguém. Muito menos assim, pelas costas. Não foi uma morte, um assassinato. Foi uma execução. Ele a baleou pelas costas e depois foi lá e deu um tiro na cabeça. Fiquei tão decepcionado que foi como se ele tivesse morrido. Mas depois eu fiquei com pena. Ele se matou ao matá-la. Ele ainda não sabe que morreu, mas está morto.”

(*) Jornalista e professor da Fundação Getúlio Vargas; entrevista publicada no site do autor <www.vitorsznejder.com.br>

 

Livros publicados por Rodolfo Konder:

1 – Cadeia para os Mortos

2 – Tempo de Ameaça

3 – Comando das Trevas

4 – De Volta, os Canibais

5 – Anistia Internacional: uma Porta para o Futuro

6 – O Veterano de Guerra

7 – Palavras Aladas

8 – O Rio da Nossa Loucura

9 – As Portas do Tempo

10 – A Memória e o Esquecimentorodolfo konder para dentro sorrindo menor

11 – A Palavra e o Sonho

12 – Hóspede da Solidão

13 – Labirintos de Pedra

14 – Rastros na Neve

15 – Sombras no Espelho

16 – Cassados e Caçados

17 – Agonia e Morte de um comunista

18 – A Invasão

19 – As Areias de Ontem

20 – O Destino e a Neve

21 – Educar é Libertar

22 – Nosso rio barrento e torturadoKonder_redação

23 – 2012 – o fim do mundo?

24 – Os sobreviventes

25 – Política e Jornalismo

26 – Luz e Sombra

27 – Águas Turvas

28 – Espelhos Partidos

29 – Encontros com a crítica

30 – Desafios da memória I e II

31 – Nossa memória habitada

32 – Sonhos ao mar

33 – Um Longo Percurso

 

Obras traduzidas por Rodolfo Konder:

1 – A Cia e o movimento operário americano

2 – Igreja, túmulo de Deus?

3 – A religião numa sociedade moderna

4 – O matrimônio

5 – A expansão econômica dos EUA na América Latina

6 – A organização do trabalho na América Latina

7 – O genial Jorge Luis Borges