07/07/2022
A ABI é uma das signatárias do Manifesto Sankofa*: Metrô no Bixiga é Saracura/Vai-Vai! que pede a paralisação das obras de construção da Linha 6 – Laranja, do Metrô de São Paulo, no local onde ficava a quadra da Escola de Samba Vai-Vai, uma das mais tradicionais e maior campeã do Carnaval de São Paulo, em função da descoberta de peças arqueológicas do antigo Quilombo da Saracura.
O Manifesto pede a interrupção temporária das obras dessa estação até que seja assegurada a preservação do sítio arqueológico, sem a transferência dos achados do local. O objetivo é que o Sítio permita a construção de uma política de educação patrimonial regular e permanente, bem como uma política efetiva de reconhecimento, preservação e valorização patrimonial que contemple os povos originários e africanos que, ao longo de mais de três séculos antes da chegada dos imigrantes europeus e asiáticos, construíram o Bixiga, São Paulo e o Brasil.
Foto: Thiago Fernandes
O advogado Rubens de Souza Fernandes, 82, cresceu no Saracura
Leia o Manifesto
“O samba não levanta mais poeira / Asfalto hoje cobriu o nosso chão/
Lembrança eu tenho da Saracura / Saudade tenho do nosso cordão”
(Geraldo Filme, Tradição)
O Bixiga das muitas histórias e encantos mais uma vez contribui para o reconhecimento da história do povo brasileiro. Foi localizado no bairro hoje central, mas no passado periferia, o Sítio Arqueológico Saracura, com peças do final do século XIX e início do século XX. Cadastrado no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 05 de abril, como de alta relevância.
Os achados surgiram logo no início das escavações da obra de uma das estações da futura Linha 6 – Laranja do Metrô, numa ação de sondagem exigida na legislação. No documento de cadastro do sítio, os especialistas afirmam que a possibilidade de destruição é “certa, devido às obras”. Por isso, a própria empresa de arqueologia contratada pelo consórcio empresarial responsável pela obra recomenda um projeto de “resgate arqueológico”, mas que não refere à garantia de preservação dos achados no local de seu encontro.
Metrô sim, mas sem destruição do patrimônio histórico
Por isso, demandamos ao Judiciário, ao Ministério Público, ao Governo do Estado, à Prefeitura (por meio do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), aos órgãos de proteção e preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural, a interrupção temporária das obras dessa estação até que seja assegurada a preservação do sítio, sem a transferência dos achados do local (o que exige um diálogo sobre como preservar as peças históricas sem inviabilizar a obra). Nosso objetivo é que o Sítio permita a construção de uma política de educação patrimonial regular e permanente, bem como uma política efetiva de reconhecimento, preservação e valorização patrimonial que contemple os povos originários e africanos que, ao longo de mais de três séculos antes da chegada dos imigrantes europeus e asiáticos, construíram o Bixiga, São Paulo e o Brasil.
Cobramos respeito ao solo do Quilombo do Saracura, e que seja cumprido o previsto no artigo 216 parágrafo 5º da Constituição Federal, que determina: “Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”.
O Metrô, a Concessionária LinhaUni (formada pelas empresas Alstom e Acciona), o governo do Estado e o IPHAN, no entanto, seguem com a obra, sem explicar quais medidas estão sendo tomadas (se é que estão) para evitar mais uma violência cultural, patrimonial, racista e histórica.
Para a população negra do Bixiga, que sempre soube da origem quilombola do bairro, é motivo de enorme alegria este achado e seu cadastro para preservação histórica, especialmente após a obra da estação ter deslocado a sede da escola de samba Vai-Vai. Agora, é preciso impedir a destruição da nossa história.
A luta em defesa de um sistema de transporte coletivo de massas, ambiental e socialmente menos prejudicial que o transporte rodoviário e individual, é parte da luta em defesa do direito à cidade. Mas o direito à cidade ultrapassa o acesso à mobilidade urbana colocado em uma nova linha metroviária. Sabemos que esta política pública é também testada e aprovada para potencializar a produção do capital, que não contempla toda a população e se alimenta da superexploração em particular da população negra, empurrada a morar nas periferias da cidade e obrigada a sofrer por horas todos os dias nos meios de transporte. É fundamental que quem contribui imensamente com seu trabalho para construção da capital de São Paulo tenha sua história preservada.
O sistema de transporte e o interesse econômico de empresas não podem literalmente passar por cima da história da componente majoritária da população brasileira, onde 57% declaram-se negros (pretos ou pardos). É o nosso passado que está sendo destruído, o direito de nossos filhos, netos e do conjunto dos brasileiros conhecerem e se orgulharem de sua história no futuro.
Um quilombo no coração de São Paulo
Como noticiava o jornal ‘Correio Paulistano’, em 09 de outubro de 1907, o Saracura era “um pedaço da África. As relíquias da pobre raça, impellida (sic) pela civilização cosmopolita que invadiu a cidade ao depois de 88, foi dar alli naquelas furnas. Uma linha de casebres borda as margens do riacho”.
O Bixiga traz em suas ruas e esquinas muitas histórias, mas boa parte da nossa população sequer sabia que o bairro nasceu do Quilombo do Saracura.
O quilombo foi a organização social de pessoas negras brasileiras e africanas escravizadas que resistiram e ajudaram a acabar com o escravismo colonial. No Bixiga, nossos antepassados construíram suas casas às margens do Rio Saracura, que corre por baixo das ruas e avenidas que hoje conhecemos. Ali uma comunidade negra residiu até meados da década de 1970, quando a “modernização” da cidade despejou os moradores para regiões periféricas como, por exemplo, o distrito de Cidade Tiradentes, na zona leste, a 35 quilômetros da Praça da Sé. Há farta documentação nos arquivos públicos e de jornais paulistas, mas muito pouca difusão desse fato.
Agora, com os achados arqueológicos, é possível reunir mais informações para levar ao conhecimento de todos o legado negro na produção da maior cidade do país, e caracterizar aquela região como uma das Pequenas Áfricas brasileiras. Está ali, adormecida e até pouco tempo resguardada pela quadra da Vai-Vai, parte dos nossos saberes, religião e da história da comunidade negra do Bixiga, da qual o próprio Vai-Vai é expressão.
Agora que a existência deste patrimônio veio à tona, não podemos permitir que nossa história seja mais uma vez escondida. É preciso respeitar o direito de nossas crianças, jovens e adultos conhecerem o seu passado. Resgatar aos idosos os direitos que lhes foram tirados. Assegurar a preservação e o repasse cultural e educacional dos importantes momentos de nossa comunidade. É hora de devolver às gerações de descendentes negros do bairro seus direitos à memória, à terra e à presença neste solo.
A permanência do sítio arqueológico no seio de sua comunidade é fundamental para que o processo educativo seja efetivo. Esse tipo de manutenção dos achados no exato lugar da descoberta foi feita, por exemplo, no Cais do Valongo no Rio de Janeiro, redescoberto em 2011 durante as obras de reforma da região portuária. Portanto, é possível aplicação de técnicas que preservem os achados, sem impedir a construção do metrô.
Ressalte-se, aliás, que, a despeito da desigualdade de classe, de gênero e de raça ser espelhada pelos monumentos e pelos nomes presentes na paisagem urbana, o combate a esse estado de coisas não se resume à instalação de estátuas.
Há muitos exemplos de cidades, no Brasil e no Mundo, que estão recuperando a história apagada pelo racismo e o escravismo colonial. São Paulo não pode continuar no atraso.
Por que Saracura/Vai-Vai e não 14 Bis?
A praça em frente à futura estação já homenageia a genialidade de Santos Dumont e seu 14 Bis. Já a origem negra e rebelde do bairro, que recebeu de braços abertos a componente populacional italiana, vive um processo reiterado de tentativas de apagamento. A exemplo do que ocorre com a praça e a estação Liberdade do Metrô, no bairro paulistano de mesmo nome, que tiveram a palavra “Japão” adicionada ao seu nome, reduzindo o valor universal e diverso da liberdade a uma única nacionalidade.
Após a construção da Avenida Paulista, tiveram início os primeiros deslocamentos populacionais de moradores descendentes dos quilombolas do Saracura. Na década de 1970, a Cidade Tiradentes (extremo leste da capital e mais baixo IDH paulistano) nasceu da remoção de famílias negras do Bixiga, despejando pela primeira vez a quadra da Vai-Vai.
A mobilidade que facilita o contínuo “desenvolvimento” paulistano já obrigou novamente a retirada da histórica quadra da Escola, que sempre foi o fio de continuidade com um passado que o Brasil faz tudo para apagar e que cobra até hoje seu preço sob a forma de uma desigualdade racial, econômica e cultural profunda como as raízes escravocratas da sociedade brasileira.
Por isso, defendemos além do nome, que a estação sirva também como um memorial com exposição permanente de parte dos objetos encontrados.
Somos pessoas que vivem no e o Bixiga, especialistas e profissionais de diversas áreas de pesquisa que reconhecem a importância de contar a verdadeira história de nossas cidades e do país. Somos alguns dos negros e negras que representam a maioria do povo brasileiro e lutam contra o racismo como movimento negro organizado. Nada sobre nós, sem nós!
Reparação histórica é direito do povo negro e dever do Estado! Por direito à verdade, à memória e à Justiça, convidamos você a ser parte desta mobilização conosco.
* Representado por uma ave que voa para a frente olhando para trás e assim se alimentando, o ideograma Sankofa expressa a importância de olhar para o passado na trilha do futuro e se alimentar daquilo que não pode ser esquecido.
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Movimento pró-Quilombo do Saracura faz visita técnica às obras da futura estação do metrô
Integrantes do Mobiliza Saracura Vai-Vai realizaram na tarde da terça-feira (5) uma visita técnica às obras da futura estação do metrô no bairro do Bixiga, em São Paulo. Representado pelos arqueólogos Marília Calazans e Rossano Bastos, que fazem parte do movimento, o grupo foi verificar o local onde foram identificados vestígios arqueológicos do antigo Quilombo do Saracura pela empresa de arqueologia contratada pela concessionária por exigência da legislação.
Após ato realizado no sábado (2) em prol da memória do Quilombo do Saracura, o movimento pretende realizar diversas ações de sensibilização e conscientização sobre a importância do sítio arqueológico, tais como uma aula pública no bairro, uma audiência na Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil da OAB e outra audiência em agosto na Câmara Municipal. Um parecer prévio à visita, construído por pesquisadores do grupo sobre a preservação do sítio, também foi divulgado neste fim de semana. Agora os arqueólogos farão um novo parecer após a verificação das obras in loco.