A graça constitucional de Jair e a desgraça do Brasil, por Eliara Santana


05/05/2022


Publicado no portal GGN

O discurso de Jair tem dois pontos centrais e muito importantes na construção da argumentação: os pilares do Estado Democrático de Direito e os valores da sociedade.

Jair sabe o que está fazendo ao confrontar o STF. Ele joga m*&rda no ventilador com bastante propriedade e muita assessoria.

Em seu pronunciamento de ontem, 21 de abril, nada era aleatório, e se construiu uma justificativa forte para corroborar a decisão da “graça” ou indulto a Daniel da Silveira, deputado condenado pelo STF por estímulo a atos antidemocráticos e ataques a ministros do Supremo e às instituições.

A argumentação construída no discurso de Jair ressalta que a decisão do presidente é baseada nos melhores princípios, portanto, não se trata de ação entre amigos, tampouco de afronta a qualquer poder. Trata-se de uma ação prevista pela Constituição, e que é amparada por pilares inquestionáveis e não somente do ponto de vista jurídico.

O discurso de Jair tem dois pontos centrais e muito importantes na construção da argumentação: os pilares do Estado Democrático de Direito e os valores da sociedade. São duas bases argumentativas de peso.

Em relação ao primeiro ponto, ele traz a noção de respeito ao Estado Democrático de Direito e afirma que sua decisão de conceder a graça é baseada inclusive em decisões já tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes em outros momentos. Ressalta também que a decisão de conceder indulto ou graça é medida constitucional e que essa concessão integra as bases de um Estado de Direito.

E então ele, Jair, como autoridade moral e constituída, traz os valores da sociedade, e não apensas justificativas jurídicas, para dizer por que concede a graça a Daniel. Portanto, o que embasa a decisão dele não é simples capricho ou ajuda ao amigo, é algo maior, são os valores basilares da sociedade brasileira e os valores basilares do Estado de Direito. Assim falou Jair para justificar a concessão da “graça”:

“Considerando que a prerrogativa presidencial para a concessão de indulto individual é medida fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito, inspirado em valores compartilhados por uma sociedade fraterna, justa e responsável;
Considerando que a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações;
Considerando que a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes;
Considerando que a concessão de indulto individual decorre de juízo íntegro baseado necessariamente nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis;
Considerando que ao Presidente da República foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público; e
Considerando que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão”

A concessão da graça se ancora na busca pelo equilíbrio entre os poderes, nos valores da sociedade, no respeito à liberdade de expressão, no respeito à comoção que se verifica na sociedade, atônita com a decisão arbitrária, pois o acusado apenas fez uso da prerrogativa da liberdade de expressão, portanto, o presidente da República recebe a “missão” de zelar pelo interesse público.
Fica, assim, concedida a graça constitucional, para a desgraça do país e das instituições.

E Jair encerra o pronunciamento sob aplausos:
“É o que eu tinha a se (sic) manifestar”

Há um terceiro aspecto ou arcabouço que não está totalmente evidenciado, mas compõe a argumentação do pronunciamento que é o aparato religioso, as categorias religiosas – perdão, missão, valores, justiça, fraternidade. Esse arcabouço obviamente dialoga com os outros dois pilares do discurso da “graça constitucional”, e isso tudo é substrato para o time da desinformação estar em campo e mobilizar o discurso e o contradiscurso. Em bem menos de 24 horas, memes e cards e vídeos estão prontos e circulando.

Os estudos bíblicos mostram que quem concede a graça do perdão é aquele que tem elevação moral, uma autoridade especial – só pode perdoar um ofensor quem já foi ofendido, essa é a ideia. Jesus tinha esse poder e deu seu perdão a vários pecadores que foram ofendidos e se arrependeram; a Bíblia diz que nós temos de perdoar não somente 7 vezes, mas “70 vezes 7”. E nesse aspecto se coloca também discursivamente a ideia de uma perseguição injusta – o STF, que já deu decisões favoráveis e aceitou indultos a outros condenados persegue os de agora por “apenas” fazerem uso de “sua” liberdade de expressão.

Não vou entrar aqui no mérito das construções e acordos com o Centrão – isso já é ponto para outro artigo. O que temos já dimensiona bem a grande lama em que estamos mergulhados. Será uma eleição como nunca antes na história desse país.