20/11/2020
Por Norma Couri*
Foram os 7 minutos e 46 segundos mais longos – o joelhaço em George Floyd em junho nos Estados Unidos acordou o mundo para a invisibilidade do racismo – e duram até hoje. Esses minutos George Floyd repercutiram nas urnas brasileiras nas últimas eleições. Longe de refletir a maioria racial do país onde 56% da população são pretos ou pardos, 32 % dos prefeitos eleitos no país neste primeiro turno se declararam negros. São 1729 candidatos eleitos, 9 mulheres. Não é muito mas é importante porque a cor do mosaico político começa mudar.
Vieram na esteira das cotas eleitorais que obrigaram os partidos a distribuir de forma proporcional a verba pública de campanha entre candidatos. O que não aconteceu, negros e mulheres em geral ficaram com a fatia menor. Mas neste Dia da Consciência Negra o olhar para a desigualdade tem foco maior.
Até a Academia responsável pelo Oscar criou sistema de cotas para tornar os candidatos à estatueta menos brancos. Histórias negras venceram a 44ª Mostra de Cinema Internacional de São Paulo este ano. Embora sem deixar claro se negros chegariam a ocupar diretorias, a OAB estabeleceu um plano de cota racial. O Magazine Luiza encarou reação negativa, mas inaugurou um programa de ‘trainees’ para negros. E pelo menos 23 empresas brasileiras participam da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial empregando 29% de profissionais negros segundo o Data Zumbi da Universidade Zumbi dos Palmares.
Mas o preconceito contra cabelo crespo existe e as mulheres negras recebem 44% a menos que o salário de homens brancos. Jovens negros são os culpados de sempre para policiais, mesmo policiais negros, porque o racismo cola até nos iguais que querem parecer menos iguais. O número de pretos e pardos assassinados no Brasil é 132% maior do que brancos, segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
“A gente sabia que tudo isso ia explodir”, disse o rapper carioca BK, 31 anos, ao lançar seu terceiro álbum “O Líder em Movimento”. BK profetizava em uma das músicas a derrubada de estátuas para colocar “heróis de verdade nessas praças” e foi o que aconteceu em Bristol, na Inglaterra, em junho deste ano, quando puseram abaixo o monumento com imagem de um traficante de escravos.
A gente sabia disso tudo. Que escolas privadas não têm professores negros. Que o percentual do IBGE é de pouco mais de 9% para negros com mais de 25 anos que concluíram o ensino superior – ainda assim, graças às cotas. E que quatro em 10 jovens negros pulam fora antes de terminar o ensino médio. Neste país de 199 mil milionários, um quarto da população vive abaixo da linha da pobreza, e desses 52 milhões, 76% são negros.
“Sim, dá medo”, diz o rapper Emicida sobre a violência em todas as esferas da sociedade, e na policial. Mas é preciso comemorar as mudanças, a resistência das candidaturas negras quando brancos tinham duas vezes mais chances de serem eleitos do que negros. E a contratação de colunistas negras na imprensa quando, não faz muito tempo, até as fotos de negros eram vetadas, a não ser nas páginas policiais. As pessoas fingiam não dar conta. Mas ao mesmo tempo que os lojistas humilhavam consumidores negros em shoppings chiques, uma classe negra emergia com sete milhões de pessoas e gastava, já nos anos 1990, R$ 500 milhões por mês em artigos não essenciais, movimentando R$ 46 bilhões ao ano.
O mesmo Estados Unidos que asfixiou George Floyd costumava caçar, linchar e enforcar em árvores os afro-americanos do sul. Fizeram isso com dois deles, Thomas Shipp e Abram Smith, cuja imagem, rodeada por uma multidão de brancos, resultou o poema de Abel Meeporol “Strange Fruit”. O poema sobre um fruto estranho pendurado naquela árvore não seria tão famoso se Billie Holiday não gravasse a música em 1939 na Sony, já que a sua gravadora, Columbia, se recusou a aceitar seu grito de guerra. Para se proteger, Meeporol também usou um pseudônimo no disco, Lewis Allan, mas continuou a protestar pois iria adotar com a mulher Anne os filhos de Julius e Ethel Rosenberg executados em 1953 por espionagem na Segunda Guerra.
Sete anos depois da gravação de Billie Holiday, em 1946, Orson Welles, o cineasta genial que deixou um filme inacabado no Brasil (”It’s All True”- É Tudo Verdade), já se manifestava contra o ódio racial no espancamento do veterano negro da Segunda Guerra, Isaac Woodward Jr (1919-1992) por um policial branco, que o cegou. “Ódio racial não é da natureza humana. Ódio racial é o abandono da natureza humana”. Quando Jefferson Tenório em “O Avesso da Pele”(Cia das Letras) relata o diálogo entre pai e filho, o pai perguntando ao filho qual era a cor da sua pele, e o menino não sabendo responder porque não via cor alguma, a gente descobre, é na sociedade que se aprende os preconceitos.
O Brasil hoje tem um presidente da Fundação Palmares, Sergio Camargo, que elogia o guru bolsonarista Olavo de Carvalho endossando suas teses, “o movimento negro exalta culturas tirânicas da África” ou “direitos iguais para todas as raças é criação do Ocidente”. Camargo acredita que a escravidão foi benéfica para os negros e não considera Zumbi um herói. No recém lançado livro de memórias “Uma Terra Prometida”, Barack Obama diz que foi o pânico do americano WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant – Branco, Anglo-Saxão e Protestante) ao ver um negro na presidência que provocou a entrada de Trump e a ultra direita republicana na Casa Branca. Que agora caiu.
No Brasil, apesar de Bolsonaro e da nossa inacreditável ministra da Mulher, Damares Alves, as mulheres ganham espaço como prova o record de 13 vereadoras eleitas na Câmara de São Paulo. A diversidade deu as caras nas urnas este ano, elegendo 220 indígenas, 57 quilombolas, uma professora e mulher transsexual foi a primeira colocada para a Câmara de Belo Horizonte, e a primeira mulher negra na Câmara de Curitiba.
Seis deputadas do PSOL relataram a violência contra parlamentares negras no Brasil, uma brutalidade sem sutilezas que vai de piadas, provocações, intimidações, ataques virtuais até ameaças graves como a de Talita Petrone (PSOL-RJ) que pediu proteção à ONU. Mas apesar de Sergio Camargo, a resistência continua. Parodiando o que Simone de Beauvoir escreveu em relação à mulher, não se nasce negro, você se torna negro. Tornar-se negro é o título de uma coluna da ativista, filósofa e escritora Djamila Ribeiro. Torna-se negro, e ter respeito por esse crescimento, é uma lição que os brasileiros estão começando a aprender.
*Norma Couri, jornalista, diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade da ABI