09/05/2023
História de uma sociedade consumista e alienada que abandona os valores humanistas e nem mais percebe as correntes autoritárias em que está aprisionada. Era para ser uma ficção escrita há 91 anos.
Um excêntrico mundo novo nos espreita
Por Álvaro Caldas (*)
Ondas de um grande estrondo percorrem o ar, com o cheiro de coisa podre se espalhando nos arredores. Cadáveres são empilhados nas esquinas. A peste do bolsonarismo desmorona com sua obsessão de crimes, fraudes e doenças que contaminaram e dividiram o país por quatro longos anos, período mais tenebroso de sua história. Quem acreditou nas trapaças e mentiras agora tapa o nariz, mas ainda quer fazer de conta que a vida política é assim mesmo, todos os políticos fedem, roubam e cometem crimes.
Com seu romance ‘Admirável Mundo Novo’, uma espécie de ficção cientifica distópica publicado em 1932, o escritor inglês Aldous Huxley antecipa o surgimento de uma sociedade alucinada pelo desenvolvimento de novas tecnologias, capazes de manipular psicologicamente as pessoas. A vertigem acontece durante o sono. Enquanto dormem, ouvem frases que se repetem, inculcando mensagens morais em seu inconsciente.
Estaremos no limiar de um mundo assim, grotesco, assombroso, excêntrico, em que as pessoas, em seu infortúnio, são induzidas a aceitar o que lhes é dito? Tornam-se indiferentes ou maleáveis, a ponto de venerar como líderes tipos desqualificados e mistificadores?
Há várias questões polêmicas em debate hoje no país, que envolvem desde a prisão do Jair pela prática sistemática de crimes e fraudes, planos econômicos, taxa exorbitante de juros, arcabouço fiscal, o assassinato de Marielle, a manipulação das fake news, com seu sinistro rastro de mentiras e ódio, até a invasão da inteligência artificial. Críticos alertam sobre os perigos das empresas que usam tecnologias invasivas que alimentam instrumentos populares, como o ChatGPT.
Nenhuma das questões, no entanto, é tão crucial para o futuro do país quanto a punição dos responsáveis pelo 8 de janeiro, nosso grande desafio. De seu julgamento depende a normalidade institucional, a continuidade da vida democrática, a liberdade de fazer escolhas, direitos e deveres assegurados.
Naquela tarde de 8 de janeiro, em Brasília, exibiu-se com despudorada desfaçatez o espetáculo grotesco de tentativa de golpe de Estado, com a invasão das sedes dos três poderes filmada pelos próprios delinqüentes. As provas estão materializadas, executores, mandantes e inspiradores devidamente reconhecidos.
Sabemos que estavam lá pessoas que não aceitaram o resultado das eleições e defendiam a ruptura violenta da ordem democrática. O que é crime, nas palavras do ministro Luís Roberto Barroso, do STF. São nítidas as impressões digitais da gangue bolsonarista. Decorridos três meses, o país se encontra à espera de uma decisão inapelável do Supremo Tribunal.
Os brasileiros estão cansados de ver aquelas imagens pela televisão, celulares e computadores. Um bando de fanáticos com a camisa verde e amarela, destruindo o patrimônio público. A cada vez que reveem as imagens, sentem um arrepio passar pelo corpo. Uma reação de asco e indignação, semelhante a que temos diante de outra cena comum de violência urbana: um grupo de policiais militares armados imobilizando um cidadão negro desarmado. Estão na rua, diante de uma viatura. O negro tenta se soltar. Os policiais o arrastam e derrubam na calçada, imobilizam seus braços e o estrangulam pelo pescoço.
Este o excêntrico modelo de mundo novo que nos espreita. Nada tem de admirável. Os cidadãos que trabalham e amam a liberdade, dos intelectuais aos novos proletários entregadores de comida, esperam que a Justiça mande para a cadeia os autores dessa infame intentona de natureza fascista. Que agiram certos de que teriam a proteção e a cobertura de autoridades e de seus superiores nas Forças Armadas, assim como tem sido em nossa sangrenta história.
Ao final, todos seriam elogiados e promovidos, da mesma forma como foram os torturadores na ditadura militar de 1964. Ao término do regime, em 1985, voltaram para suas casas condecorados e anistiados.
É hora de levantar um clamor e dizer chega! Sem julgamento e punição dos envolvidos no 8 de janeiro tudo o mais desmorona. Este é o ponto de partida para manter o regime de liberdade, o arcabouço fiscal do Haddad, ajustar os juros do Banco Central que travam o crescimento e o emprego, e submeter à lei a mistificação das fake news, que servem à expansão do extremismo de direita.
Huxley criou o seu admirável mundo novo para nos encantar e advertir. Entre nós, o juiz Alexandre de Moraes, o Xandão, deve saber disto. Pelo menos assim tem agido, com determinação e vigor para fazer valer o cumprimento da lei, não importa se do agrado de um conservador, liberal, anarquista ou comunista.
Editora Globo
(*) Jornalista e escritor, autor dos livros Deu no jornal – o jornalismo impresso na era da internet, Balé da utopia, Tirando o capuz, e Cabeça de peixe.