03/02/2023
Por Memélia Moreira, em Mosaico
As imagens dos corpos semi-mortos de pessoas do povo Yanomami que causaram horror e indignação ao redor do mundo me trouxeram de volta o horror que vivi ao lado desse povo durante outro pico de massacre, acontecido há exatos 23 anos. Não precisei ver as imagens porque eu as vivi. Carreguei em meu braços os corpos de adultos e crianças que chegavam em voos contínuos de helicópteros na aldeia Paá-Piu vindos de diferentes aldeias. Eles pesavam menos de 30 kg. Não pareciam mais humanos. Eram esqueletos que respiravam com dificuldades.
Era a Nova República, governada pelo presidente José Sarney que estava passando o comando para seu sucessor, Fernando Collor.
E não me falem em números. É absolutamente ridículo dizer que morreram 722 crianças/adultos. De onde tiraram esse número? Percorreram todas as aldeias? Fizeram um censo antes para saber quantos Yanomami existem? Ou é número cabalístico? Isso é ridículo.
Ora, me poupem.
Não tenho fotos minhas naquela situação porque nunca fui personagem. Sou e serei sempre apenas testemunha da História. Era janeiro de 1990. Outro dia, se pensarmos em tempo histórico.
As cenas de 1990 apenas repetiam uma outra situação de massacre, acontecida quando o Estado brasileiro começou a construir a Perimetral Norte. Uma aldeia inteira devastada. Naquela, pudemos contar os mortos. Entre adultos e crianças, foram 68.
Tropeçávamos em ossadas vivas no meio da mata. Nas redes, olhos sem cor pareciam nos perguntar o que estava acontecendo. Eles não sabiam. Apenas morriam de fome porque foram infectados por gripe levada para o território indígena pelos trabalhadores da construtora Camargo Correa, encarregada de abrir os buracos na mata e construir aquela estrada sem sentido, sem rumo, sem necessidade.
Morriam de fome porque a fraqueza da gripe lhes impedia buscar alimentos na mata. E a caça fugira com o barulho dos tratores que rasgavam a floresta. Secaram rios com terraplanagens pagas a preço d ouro enriquecendo a conta bancária da construtora.
O massacre aconteceu naquele ponto onde a savana se transforma em floresta, a Floresta Amazônica que, poucos anos depois era apenas um areal coberto de árvores fantasmas. Isso era 1972/1973. O auge da ditadura militar, na época comandada por um facínora de olhos miúdos chamado EMILIO GARRASTAZU MÉDICI.
Três anos depois, em 1976, mais de três mil garimpeiros comandados por Altino Machado, laranja dos grandes grupos capitalistas que, longe, bem longe dali ditavam a vida e a morte dos índios. Os três mil garimpeiros invadiram a Serra das Surucucus de forma ordenada dias depois que o governador de Roraima, CORONEL FERNANDO RAMOS PEREIRA anunciou em Brasília ao seu comandante ERNESTO GEISEL, a descoberta de urânio na serra.
“Na minha opinião, uma terra rica como essa não pode ser dar o luxo de conservar meia dúzia de tribos indígenas atravancando o desenvolvimento”, disse o coronel. 24 horas depois, foi se desculpar porque a repercussão internacional foi imediata.
Em menos de uma semana, o exército de garimpeiros invadia a terra indígena exatamente no ponto que os Yanomami consideram sagrado, a Serra das Surucucus.
Acreditava nunca mais enfrentar cenas semelhantes. Mas os sinais de que elas estavam esperando o momento de acontecer eram dados mês a mês. Num dia, a notícia da entrada de 200 garimpeiros na terra indígena. No outro, índios sendo mortos por garimpeiros que já contavam com apoio das organizações criminosas (braço do PCC e milícias), num terceiro, meia página de jornal contando que as meninas Yanomami trocam sexo por um prato de arroz e feijão.
E chegou o inominável presidente Bolsonaro. Não vou me perder na busca de adjetivos para classificá-lo. Ele jurou os índios de morte. E cumpriu a promessa com a ajuda de uma mulher chamada Damares Alves, figura perversa e sexualmente pervertida, agora senadora da República.
O grupo dos inatingíveis. E não apenas ela. Mas com seu séquito de militares que faziam e continuam fazendo vista grossa tanto para o comércio ilegal de ouro quanto para o narcotráfico que despeja toneladas de cocaína que vão chegar aos mercados das cidades brasileira e levam de volta quilos e mais quilos de ouro.
A situação é conhecida das autoridades militares e civis. E é conhecida há bastante tempo. Não há surpresas nessa nova tragédia.
Sou leitora ávida de livros da História do mundo. Conheço genocídios praticados desde Alexandre o Grande, em sua luta imperial para conquistar o Afeganistão, conheço genocídios perpetrados pelos imperialistas franceses e ingleses na África e Ásia. Conheço também o genocídio do povo judeu e cigano praticado pelo estado alemão comandado por Hitler. Conheço em detalhes o genocídio ao qual o povo armênio foi submetido pelo Estado turco, no começo do século XX.
Todos esses genocídios – à exceção do genocídio palestino praticado pelo Estado de Israel desde o final dos anos 40 – tem começo, meio e fim.
Mas o genocídio Yanomami, que se iniciou há mais de século é o único genocídio continuado na História do Ocidente. E é o mais cruel de todos porque o povo-alvo já no século XX ainda estava na idade da pedra polida. Desconheciam arma de fogo, desconheciam a gripe, desconheciam a fome, a prosittuição, a bebida alcóolica e acreditam que os metais que estão sob a terra por onde perambulam caçando e coletando seus frutos, são apenas os pilares que sustentam o planeta.
Daí a crueldade da nossa civilização.
Dito isso, quero lhes informar que nunca tive partido político. Minha vida inteira foi na luta em defesa do dominado contra o dominador. Não sou de aplauso fácil. Não me deixo enganar por palavras de ordem ditadas por propagandas enganosas. Tenho apenas dois compromissos na minha vida, minha família e a defesa dos dominados.
E chegamos ao recente massacre. Fiquei satisfeita com a pronta reação do Estado brasileiro assumindo medidas emergenciais que podem dar sobrevida a esse povo que hoje morre de fome e bala.
Mas isso é pouco. Ou melhor isso é apenas aspirina para tratar de um câncer.
Se quiserem mesmo liquidar o garimpo, a investigação vai ter que ser longa, acurada e, sobretudo, cortando a própria carne do Estado. Para começo de conversa aviso que a opção não é fácil.
Elementos para iniciar as investigações estão sob o poder do Estado. Dorme em alguma gaveta da Comissão da Verdade instalada no governo de Dilma Roussef um documento entregue nas mãos da presidente da comissão, Maria Rita Kehl com os nomes dos donos de garimpo. São figuras conhecidas. São militares, são agentes da Polícia Federal, são grandes empresários que financiam campanhas, são políticos aliados do atual governo e dos governos anteriores.
Até hoje não entendi a razão pela qual esse documento entregue em 2014 nunca veio a público. Não entendi ou entendi demais. Ali estavam militares de alta patente. Foram poupados pela Comissão porque, talvez, e digo um talvez com quase certeza, de amigos dos investigadores.
Se quiserem fazer a coisa certa devem abrir mão da sanha de poder pelo poder. Que tal começar pelo ex-líder do governo de Lula, o ex-senador e ex-presidente do PMDB, ROMERO JUCÁ. Suas digitais estão em cada um dos mais de mil mortos do massacre de 1989/1990, quando foi governador de Roraima e abriu o território indígena para mais de 30 mil garimpeiros.
Nos corpos corpos mortos ou semi-mortos estão as digitais dos comandantes do Projeto Calha Norte na Serra das Surucucus, não por acaso, a região mais invadida pelos garimpeiros.
Não adianta apenas a perseguição dos garimpeiros. Eles são o lumpensinato, a ponta mais miserável da sociedade brasileira.
Garimpeiros não tem dinheiro para comprar as dragas que que estão escavando os rios Uraricoera, Branco, Mucajaí e outros. Os garimpeiros não tem dinheiro para com comprar trator de esteira e derrubar a mata para construir mais um campo de pouso e decolagem na mata. Os garimpeiros são os soldados da miséria e explorados até suas últimas forças.
Eles são alvo porque não conheço na História do Brasil, nenhum governo com força suficiente para enfrentar essa selvageria capitalista. Não. Mas conheço bem a sede de poder de todos eles.
E, antes que eu me esqueça, fechar o espaço aéreo do território Yanomami tem cor e cheiro de pirotecnia. A mesma pirotecnia usada no governo Sarney explodindo as pistas usadas pelos garimpeiros. Era um show. Estive em várias dessas operações, ROMEU TUMA, diretor-geral da PF, sorria feliz com as explosões.
Fechar o espaço aéreo daquela fronteira difusa em plena selva mais parece política para europeu ver. Há quem bata palmas. Afinal de contas todos se embevecem. É a sociedade do espetáculo. AVISO: isso é apenas pirotecnia reciclada.
Passado o surto de indignação, aposto que em quatro meses ou até menos, o exército de miseráveis voltará à área.
Mas aí, o espetáculo será outro. Talvez com mais atrações.
P.S. Só para lhes dizer orgulhosamente que a campanha pela demarcação do território Yanomami, as estratégias para ver aquele povo dono de seu próprio território aconteceram na mesa da cozinha da minha casa.
Eram debates intermináveis com duas figuras heróicas na defesa do povo Yanomami. Estou me referindo à grande CLÁUDIA ANDUJAR e ao antropóolgo BRUCE ALBERT, além do querido missionário CARLO ZACQUINI.