03/07/2022
Morreu neste sábado (2) Miguel Etchecolatz, 93, um dos maiores torturadores da ditadura na Argentina (1976-1983). Ele tinha nove condenações a prisão perpétua por crimes contra a humanidade.
Etchecolatz foi diretor da polícia de Buenos Aires até 1979, quando se aposentou. Na ditadura, comandou ao menos 20 centros de detenção clandestinos, onde milhares de pessoas foram torturadas e mortas.
Em 1986, recebeu a primeira condenação. À época, a Justiça indicou que ele torturou 91 pessoas. Anos depois, o ex-policial foi condenado por roubo de bebês, sequestros, assassinatos e desaparecimentos.
A última condenação foi em maio. Ele foi julgado por sequestro e tortura de sete vítimas e por assassinato de outras três. Os crimes ocorreram na prisão clandestina conhecida como Pozo de Arana (poço de aranha). Antes, em 2018, o ex-policial foi condenado por homicídio qualificado e estupro.
Etchecolatz foi também um dos responsáveis pela chamada “Noite dos Lápis”. Em setembro de 1976, dez estudantes foram detidos e torturados pela polícia em La Plata, na província de Buenos Aires.
Um dos julgamentos mais emblemáticos aconteceu em 2006. Na época, o pedreiro Jorge Julio López chamou Etchecolatz de “serial killer” e disse que ele “não tinha compaixão”. Dias depois a testemunha desapareceu e, até hoje, o sumiço é ligado ao nome do ex-policial.
Etchecolatz nunca divulgou informações de onde estariam os corpos das vítimas da ditadura. “Em razão da minha posição, tive que matar e faria de novo”, afirmou ele em um dos julgamentos.
Etchecolatz morreu de problemas cardíacos em uma clínica na qual foi internado na quarta (27), segundo a imprensa local. Antes, estava preso. Em 2016, a Justiça chegou a lhe conceder prisão domiciliar, sob o argumento de que, devido à idade do ex-policial, ele não poderia ficar em uma penitenciária comum. A decisão, porém, foi revogada após recurso do governo –então comandado por Mauricio Macri.
Pela lei argentina, os maiores de 70 anos têm o direito de pedir para cumprir o resto da pena em domicílio — é o caso dos membros do regime militar. O governo Macri, por outro lado, deu espaço para reclamações dos militares, concedendo audiências a eles. Já as gestões dos ex-presidentes Néstor e Cristina Kirchner transformaram o julgamento dos responsáveis pela ditadura em política de Estado. Néstor, por exemplo, derrubou indultos e anistias existentes a militares que cometeram crimes na ditadura.
Mariana Dopazo, filha de Miguel Etchecolatz, que renegou o sobrenome paterno na Justiça, escreveu o seguinte:
“Criar vida própria, à sombra do meu pai, um dos genocidas mais sinistros da nossa história, foi muito difícil. Sempre cercada de armas, acompanhada de custódia policial e presa em uma bolha. Minha mãe fazia o que podia , ameaçada com frequência por ele: “Se você for embora, atiro em você e nos meninos”.
De fato, minha lembrança mais crua da infância explica o sofrimento permanente: cada vez que ele voltava do Quartel da Polícia de La Plata, nos trancávamos no armário para rezar com meu irmão Juan, para pedir-lhe que morresse na viagem. Sim, era o que sentíamos, todos os dias de nossas vidas. Cresci entre situações traumáticas, em completa solidão, porque viver com Etchecolatz significava não ter paz, fazer o que ele dizia e acostumar-se ao medo de abrir a boca, porque a resposta mais terrível poderia vir.
Mesmo assim, desde pequena eu era bastante rebelde, tanto que minha família me apelidava de “estrelinha vermelha”. E o desobedeci, sim, tanto quanto possível. E nesse ritmo, seus golpes foram repetidos. Ele era cruel, castigava muito e depois se preocupava: “Olha o que você me faz fazer com você”, disse ele. Quando ouvi seus passos, senti o perfume do terror. E sim, ter convivido com um genocida me permitiu conhecer sua essência, seu rosto mais verdadeiro.
Ele sempre foi um narcisista, uma pessoa sem bondade, impenetrável, que nunca dava espaço para seus filhos pedirem. Ele nunca nos explicou nada. Há assassinos que contaram algo a seu círculo íntimo, mas não Etchecolatz. E é um contraponto interessante: ele não falou com a família nem na frente da Justiça, mantendo um duplo silêncio. Em outras palavras, ele encarnou a coisa mais terrível de todos os tempos, sem nunca se importar com o outro e se tornando o símbolo mais sangrento do aparato repressivo.
Quando a Vara de Família me autorizou a me desfazer do sobrenome manchado de sangue, em 2016, para substituí-lo pelo do meu avô materno, achei que tinha acabado uma etapa. No entanto, a intenção de beneficiar o genocida me deixou ansiosa. Senti que a Justiça havia deixado de ser justa em matéria de crimes contra a humanidade e começava a nos abandonar. Mas poderia ser ainda pior… Dias atrás, visitando minha família, descobri que agora ele terá o privilégio de voltar para casa. “É impossível para eles dar o endereço de casa”, minha mãe me assegurou, para me tranquilizar. Até que nos ligaram para nos avisar. Tudo ficou em silêncio. Eu não conseguia pensar ou falar mais. Fiquei assim a noite inteira, tentando sair da escuridão.
Diante de tais notícias, não posso imaginar o que sentirão aqueles que sofreram, e menos ainda aqueles que terão que conviver com isso, no mesmo bairro de Mar del Plata. Apenas dois tipos de pessoas realmente conhecem um cara como ele: suas vítimas e seus filhos. É por isso que eles não vêm me dizer. Ninguém pode me vender o discurso da reconciliação, nem a história do velho doente que merece ir para casa. Aqueles de nós que conhecem seu visual, sabemos do que se trata. Há centenas de genocidas em prisão domiciliar, mas ele faz nosso sangue ferver porque representa o pior da época, depois de ter sido chefe de 21 centros clandestinos e não ter se arrependido um centímetro de suas ações, fiel e incondicional às mentes que planejou ideologicamente o massacre.
Seria justo e restaurador se Miguel Osvaldo Etchecolatz ficasse para sempre em uma prisão comum, até o fim de seus dias. Pois bem, as marcas no corpo, as marcas na memória, as marcas do medo, as marcas do não saber, nunca se apagam, mas nunca mais. Como sociedade, devemos lutar para que revoguem essa inadmissível decisão e, mesmo sofrendo, celebro que continuamos a sair na rua, mesmo que queiram nos proibir. Aos 47 anos, nunca acreditei que sofreríamos tal revés, mas a força popular é enorme e deve continuar crescendo até colocarmos cada uma das feras atrás das grades.
Não é transe com dor, nem o horror é silenciado.
Ele tinha nove condenações por sequestro, tortura e crimes contra a humanidade contra pelo menos 84 pessoas. Detido em um presídio comum hoje ele morreu e leva consigo a verdade de centenas de desaparecidos.”
OBITUÁRIO COM APLAUSOS
Os canalhas vivem muito, mas um dia eles morrem
Poema de Mário Benedetti, escrito em 1963
Vamos festejar
venham todos
Os inocentes
as vítimas
Aqueles que gritam à noite
Aqueles que sofrem durante o dia
Aqueles que doem o corpo
Aqueles que abrigam fantasmas
Os que andam descalços
Aqueles que blasfemam e queimam
Os pobres congelados
aqueles que amam alguém
Os que nunca são esquecidos
vamos celebrar
venham todos
o bandido está morto
a alma negra acabou
ele latiu
o porco
acabou para sempre
Viva
todos venham
vamos celebrar
não dizer
a morte
sempre apaga tudo
purifica tudo
qualquer dia
a morte
não apaga nada
permanecem
sempre as cicatrizes
Viva
o cretino morreu
vamos celebrar
não chorar de costume
deixe seus colegas chorarem
e engolir suas lágrimas
o monstro herói acabou
acabou para sempre
vamos celebrar
para não ficar morno
não acreditar que isso
é qualquer homem morto
vamos celebrar
para não ficar solto
para não esquecer que isso
é qualquer homem morto
vamos celebrar
ele é um maldito homem morto