60 anos do golpe de 1964: que país queremos construir?


29/03/2024


Por Geraldo Cantarino (*)

Em 1978, durante a ditadura militar, o compositor Renato Russo indagou: “Que país é esse?”. Nove anos depois, essa pergunta deu nome a um dos maiores sucessos da banda Legião Urbana. Com o golpe de Estado de 1964 completando 60 anos, essa indagação torna-se relevante e oportuna. Ela nos leva a refletir não apenas sobre o que somos hoje, mas também sobre o que queremos ser como nação.

Afinal, a deposição de João Goulart, presidente legítimo do Brasil, e a tomada do poder governamental pela força redesenharam, com mãos de chumbo, a estrutura política, econômica, social e cultural deste país. Com o apoio do governo norte-americano, o novo desenho beneficiou empresas privadas, muitas associadas ao capital internacional, que conspiraram para afastar o presidente.

Conforme destacado pelo cientista político René Armand Dreifuss, em sua obra seminal 1964: a conquista do Estado, o que ocorreu em 31 de março de 1964 não foi um golpe militar conspirativo, mas sim o resultado de uma campanha política, ideológica e militar travada por uma elite orgânica. Essa elite era composta por empresários e tecnoempresários, intelectuais e militares, representantes de interesses financeiros multinacionais e associados, exercendo seu poder de classe. A campanha culminou em abril de 1964 com a ação militar, “que se fez necessária para derrubar o Executivo e conter daí para frente a participação da massa”, analisou Dreifuss.

O que se seguiu ao golpe civil-militar – como é preferível chamá-lo hoje, mas batizado e comemorado pelos militares como uma revolução vitoriosa – foi um regime autoritário, brutal e desumano, marcado por uma cruzada obsessiva contra qualquer manifestação ou ideologia acusada de comunista, que perdurou por 21 longos anos.

Instalada após o golpe, a ditadura militar cometeu uma série de ações devastadoras: fechamento do Congresso Nacional; supressão de liberdades civis; perseguição a movimentos sociais, sindicatos e organizações estudantis; exoneração ou aposentadoria compulsória de professores universitários; suspensão da garantia de habeas corpus; adoção de medidas arbitrárias para conter o avanço da oposição no parlamento; e a imposição de eleições indiretas para governadores e presidente em colégios eleitorais controlados pelo governo e não pelo voto popular, e, portanto, sem legitimidade democrática.

A aquisição de sofisticados armamentos bélicos, a construção de obras faraônicas duvidosas e os projetos desenvolvimentistas na Amazônia, com grande impacto no meio ambiente e nas populações tradicionais, também fizeram parte da ditadura. Essas ações foram realizadas em detrimento de políticas públicas prioritárias em saúde e educação, consumindo enormes quantias de recursos públicos e envolvendo empréstimos internacionais, resultando no aumento da dívida externa.

Além disso, o regime impôs a censura à imprensa e à liberdade de expressão, com o intuito de proibir críticas e impedir a divulgação de fatos desfavoráveis ao governo, criando, assim, narrativas distorcidas da realidade. Os governos militares se valeram da mentira para ocultar abusos e manipular a opinião pública, chegando ao extremo de forjar suicídios e acidentes automobilísticos para encobrir homicídios cometidos por agentes de segurança. E para aqueles que acreditam que não houve corrupção durante a ditadura, o regime foi alvo sim de inúmeras acusações, provenientes de empresários e até mesmo de militares, que incluíam superfaturamento em compras e obras públicas, fraudes, subornos, propinas milionárias, tráfico de influência e arbítrio na cúpula do governo.

Como se não bastasse, o regime militar cometeu graves violações de direitos humanos para extrair informações ou confissões e intimidar opositores, criando um constante clima de intolerância, ameaça e medo. Essas violações foram resultado de uma política de Estado, e não simples excessos esporádicos perpetrados por subalternos em casos isolados, como tentaram justificar.

No processo de abertura política, grupos reacionários de extrema-direita, com a participação de policiais e oficiais do Exército, resistiram às iniciativas de redemocratização do país. Promoveram atentados a bomba na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), destruindo o 7º andar do edifício-sede; no gabinete do vereador Antonio Carlos Carvalho (MDB-RJ) no Rio de Janeiro, mutilando e ferindo assessores; na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), resultando na morte da secretária Lyda Monteiro da Silva; e no Riocentro, que causou a morte acidental de um sargento e ferimentos em um capitão do Exército.

A ditadura terminou, em tese, em 1985, com a eleição indireta de um presidente civil. O último general a ocupar a Presidência deixou o Palácio do Planalto com 69% de desaprovação popular. Grande parte dessa erosão da opinião pública estava associada à crise econômica, com inflação nas alturas e corrosão salarial. Para os trabalhadores, ficou a sensação de que o Brasil tinha piorado e ficado muito mais pobre. O voto direto para presidente só foi permitido em 1989, após a promulgação da nova Constituição em 1988. Contudo, as nefastas consequências desse período ainda se fazem presentes nos dias atuais.

As enormes desigualdades sociais, por exemplo, que persistem hoje no país foram profundamente acentuadas durante a ditadura. Conforme observado pelo antropólogo Darcy Ribeiro, o primeiro impacto da economia brasileira naquela época “foi o enriquecimento mais escandaloso dos ricos e o empobrecimento mais perverso dos pobres”. Os baixos salários, a perseguição a líderes sindicais e a proibição de greves estavam na base do chamado “milagre econômico”, período em que o Brasil atingiu taxas médias de crescimento muito elevadas e sem precedentes. Para o sociólogo e cientista político Helio Jaguaribe, apesar desse considerável crescimento econômico, a situação social do país se deteriorou significativamente. “Aumentou a brecha entre os segmentos mais ricos e mais pobres, levando o Brasil à maior taxa de desigualdade do mundo”, afirmou.

Os crimes cometidos pela repressão aos opositores do regime também não foram devidamente investigados e punidos até hoje, o que resultou em uma falta de acerto de contas com esse passado bárbaro. Que seja dito alto e bom som: a ditadura foi implacavelmente cruel com seus dissidentes políticos. Dados do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, estimaram em 2010 que pelo menos 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses de 1964. A maioria dessas detenções ocorreu de forma arbitrária e sem respaldo judicial, e inúmeras delas nem chegaram a ser registradas. Ocorreram ainda 130 banimentos, 4.862 cassações de mandatos eletivos com suspensão de direitos políticos, além de uma cifra incalculável de exílios e refugiados políticos.

Estimativas indicam, ainda, que cerca de 20 mil brasileiros foram submetidos à tortura. Essas violações abrangeram tortura física e psicológica, maus-tratos, abusos, violência sexual e outros tratamentos desumanos e degradantes. A prática de tortura, vista como uma mancha permanente na sociedade brasileira, foi denunciada inúmeras vezes em fóruns internacionais por organizações de defesa dos direitos humanos. A Anistia Internacional chegou a afirmar que o Brasil era quase um exemplo clássico de um país em que a tortura havia se tornado um instrumento institucional de terror. Sobreviventes dessas intermináveis sessões de horror estão entre nós hoje, capazes de relatar suas dores, tormentos e indignações.

Entretanto, centenas não resistiram e morreram, muitas vezes, ao som de risos e chacotas de seus algozes, no vale-tudo hediondo dos regimes de exceção. Dados oficiais confirmam 434 mortes e desaparecimentos de vítimas do regime militar. Porém, estima-se que o número total seja muito maior, incluindo milhares de camponeses e indígenas. Houve ainda aqueles que desapareceram forçadamente e os que foram mortos em execuções sumárias e extrajudiciais. Seus corpos nunca foram entregues às famílias, o que levou as autoridades da época a serem acusadas de crime de ocultação e destruição de cadáver.

Muitos desses crimes permanecem impunes, deixando um legado que, além de causar repúdio nas famílias afetadas, provoca profundos danos ao país. A impunidade serve de estímulo à violência e à criminalidade, como se vivêssemos numa terra sem lei, onde criminosos não são responsabilizados por seus atos e ficam livres para cometer outros delitos sem enfrentar as devidas consequências legais. A falta de punição enfraquece o sistema judicial, mina os princípios democráticos de igualdade perante a lei e viola o direito à verdade e à justiça.

Portanto, ao tentarmos responder à pergunta de Renato Russo, é inevitável voltarmos ao fatídico 31 de março de 1964, considerado o evento-chave da história recente do Brasil. “Dificilmente se compreenderá o país de hoje sem que se perceba o verdadeiro alcance daquele momento decisivo”. A afirmação é do historiador Carlos Fico, professor titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e uma referência nacional na pesquisa sobre a ditadura militar de 1964 a 1985.

Em seu livro de bolso, O golpe de 1964: momentos decisivos, lançado no cinquentenário do golpe, Carlos Fico fez o seguinte questionamento: “Haveria espaço ainda hoje no Brasil para novos golpes militares?” Na época, dez anos atrás, o historiador disse que era difícil responder a essa pergunta, mas avaliou que, provavelmente, não. Entretanto, conspirações recentes aparentam demonstrar que sim. De acordo com investigações em curso, o país esteve recentemente à beira de mais uma tentativa de ruptura institucional. No encerramento do livro, o historiador afirma que o ideal seria “podermos responder a essa pergunta com um não definitivo, garantindo que a sociedade brasileira não mais aceita fórmulas autoritárias para a resolução de seus conflitos”.

Esse parece ser um ponto crucial na reflexão dos 60 anos do golpe. Enquanto o governo se vê incapacitado ou impossibilitado de realizar atos em memória do golpe de Estado – numa contradição que contrariou muitos grupos que apoiaram a eleição do atual presidente – cabe, então, à sociedade brasileira refletir sobre o passado e os caminhos que deseja percorrer para o futuro.

Neste momento, a meu ver, não pode haver outro caminho senão o de reafirmar o compromisso do país com o Estado Democrático de Direito, conforme expresso no topo da nossa Constituição Cidadã. Logo no início, a Carta Magna estabelece os fundamentos desse Estado Democrático, que incluem soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicação da pobreza, redução das desigualdades sociais e prevalência dos direitos humanos. Está tudo lá, basta seguir o que foi traçado, principalmente o que determina o parágrafo único do artigo 1º: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos”. Desviar-se das linhas da Constituição é colocar em risco tudo o que foi conquistado com muita luta, sofrimento e sacrifício. Sigamos em frente, portanto, na defesa inabalável da democracia. Sempre. Golpe, ditadura, censura e tortura nunca mais.

(*) jornalista e autor de quatro livros sobre o período da ditadura militar, com base em documentos diplomáticos britânicos, incluindo Geisel em Londres, lançado pela editora Mauad X em novembro de 2023.