30 anos sem o talento e a combatividade de Lélia Gonzalez


09/07/2024


Por Rogério Marques, conselheiro da ABI


Lélia em três momentos: aos 31 anos, aos 37 e aos 45 (Acervo pessoal)

No dia 10 de julho de 1994 o Brasil perdia uma de suas grandes pensadoras – a professora, filósofa, militante política, feminista e antirracista Lélia Gonzalez. Tinha 59 anos e estava no auge de sua atividade intelectual quando sofreu um infarto. Nascida em primeiro de fevereiro de 1935, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Lélia era a penúltima de 18 irmãos. A mãe era empregada doméstica, descendente de indígenas, e o pai um operário negro.

A família mudou-se para o Rio em 1942, trazida por um dos irmãos. Começou então a trajetória ao mesmo tempo difícil e brilhante de Lélia. Ainda criança, trabalhou como babá, mas se destacou nos estudos, no tradicional Colégio Pedro II, escola pública. Depois graduou-se em história e geografia na Universidade do Estado da Guanabara, atual UERJ, estudou filosofia na mesma instituição e tornou-se professora universitária.

DO BRANQUEAMENTO AO ATIVISMO

Em 1978 foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado. É considerada pioneira na concepção do feminismo negro, ou afro-latino-americano, protagonizado por mulheres negras e indígenas. Ainda na década de 70 deu aulas de Cultura Negra na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Mas nem sempre foi assim.

Em entrevista ao Pasquim, em 1986, Lélia Gonzalez diz que por algum tempo chegou a negar sua condição racial, como forma de superar as barreiras impostas pelo racismo:

“Houve, por exemplo, uma fase da minha vida em que fiquei profundamente espiritualista. Era uma forma de rejeitar o meu próprio corpo. Essa questão do branqueamento bateu forte em mim e eu sei que bate muito forte em muitos negros também. Há também o problema de que, na escola, a gente aprende aquelas baboseiras sobre os índios e os negros, na própria universidade o problema do negro não é tratado nos seus devidos termos.” (O Pasquim, 871, 20-26 de março de 1896).


Lélia Gonzalez e Angela Davis, em 1984, nos Estados Unidos (Acervo pessoal)

Hoje, 30 anos depois de sua morte, Lélia Gonzalez é uma referência nas lutas antirracistas e feministas em vários países. Quando esteve no Brasil, em 2019, a ativista negra Angela Davis declarou que, para ela própria, Lélia Gonzalez era uma referência: “Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo”, declarou Angela.

GÊNERO, CLASSE SOCIAL E ETNIA

Lélia deixou uma importante obra, que inclui os debates que envolvem gênero, classe social e etnia – debates em que foi precursora. Participou de conferências no Brasil e no exterior, escreveu inúmeros artigos para jornais e revistas. Publicou os livros Lugar de negro (Marco Zero, 1982, em parceria com o argentino Carlos Hasenbalg) e Festas populares no Brasil (Index, 1987).

Em 2020, a editora Zahar lançou a coletânea Por um feminismo afro-latino-americano, que reúne ensaios acadêmicos, entrevistas, artigos publicados na imprensa e trechos de palestras de Lélia em congressos internacionais.

Há poucos dias o site da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) publicou uma foto pouco conhecida de Lélia Gonzalez, em que ela cumprimenta o jornalista Olympio Marques dos Santos, também ativista político e do movimento negro. A imagem é de 1981, quando Olympio lançou na Câmara Municipal do Rio seu livro Negro: liberta-te. O jornalista, que era filiado à ABI e foi preso algumas vezes por sua militância, morreu naquele mesmo ano de 1981.


Lélia cumprimenta o jornalista e militante Olympio Marques dos Santos, em 1981, na Câmara Municipal do Rio, no lançamento do livro “Negro: liberta-te”, de Olympio (Acervo da família de Olympio Marques dos Santos)

A luta de pessoas como Lélia e Olympio deixa raízes profundas, se multiplica. Mesmo não estando mais entre nós, suas ideias continuam reverberando, transmitindo a esperança de um mundo melhor, mais justo e fraterno, por mais longa que seja esta caminhada.