29/06/2022
por Péris Ribeiro, associado da ABI, em Museu da Pelada
A cena é inesquecível – e sempre emociona. Aos quatro minutos da partida final, os donos da casa já vencem por 1 a 0, o que faz Didi ir buscar a bola nos fundos das redes brasileiras. Só que, na volta, levando-a de cabeça erguida até o centro do campo, sai falando duramente com o time inteiro. Até que, para encurtar a conversa, define de vez a questão:
– Acabou! A sopa deles acabou! Vamos encher a caçapa desses gringos de gols. Aqui dentro da casa deles mesmo!
O final da história, ninguém desconhece! O Brasil enfiou 5 a 2 numa espantada Suécia, na memorável tarde de 29 de junho de 1958, sagrando-se campeão do mundo pela primeira vez. E Didi saiu dali, do Estádio Rasunda, definitivamente consagrado. Ainda mais depois de ser apontado, pela maioria absoluta de votos da crônica esportiva internacional, como o Maior Jogador daquela Copa disputada nos atapetados gramados escandinavos.
Mesmo assim, o que bem poucos tiveram a sensibilidade de vislumbrar naquele gesto – ainda mais, com a alegria sem tamanho vivida logo depois -, foi que a atitude altiva e determinada do Mestre Didi revestiu-se de uma magnitude e um simbolismo profundamente emblemáticos. Particularmente porque, a partir daquele gesto, caíram de vez tabus que pareciam se eternizar. Dogmas que aprisionavam o jeito de pensar e agir de todo um povo – uma gente, no mínimo, diferente. Na maneira de ser. De encarar a vida.
O mais inacreditável é que, pouco antes da convocação para o Mundial, um fato, no mínimo, intrigante – e, pior: altamente sigiloso – havia ocorrido nos bastidores. É que um relatório tendencioso – quando não, discriminatório. Com um ranço profundamente “nazista” – chegara às mãos do presidente da CBD – hoje, CBF -, João Havelange.
Nele, os negros eram abertamente acusados de tudo. E, o mínimo que se dizia deles, era que tremiam sempre nos momentos decisivos. Que não sabiam se comportar socialmente. E que, longe daqui, viviam na mais cava depressão, “morrendo de saudades da família, do sol tropical e do popular feijão preto”. Ou seja: não eram realmente capazes de ganhar uma competição da importância de uma Copa do Mundo.
Estranhamente, no dia da estreia contra a Áustria, na cidadezinha de Udevalla, só quando o Brasil posou para um batalhão de fotógrafos, é que se pôde perceber: havia apenas um negro no time. Assim mesmo, por motivos imperiosos. Afinal, Didi era não só o maior, mas o mais caro e famoso jogador de futebol do país. E o seu reserva imediato, Moacir, era mais negro ainda. Ou seja: era um típico “ preto retinto”.
A sorte é que, depois de aparadas algumas delicadas arestas – e de, por fim, haver prevalecido o tão esperado bom senso, com Garrincha, Zito e Pelé entrando no time, a partir do jogo com a Rússia -, as coisas foram aos poucos entrando nos eixos. E se pôde comemorar, com juros e correção monetária, o triunfo da, àquela altura, reverenciada “fórmula mágica”.
Afinal, nos retumbantes 5 a 2 contra os espantados suecos, aquele time de negros, mulatos, um descendente direto de índios – Mané Garrincha – e alguns poucos brancos, havia exibido simplesmente “o maior espetáculo da terra”. O Brasil que acabara de se sagrar campeão, era o maior time já visto em uma Copa do Mundo – e aplicando a maior goleada na história das decisões.
Os Didis, Pelés, Garrinchas, Djalmas Santos, Bellinis e Niltons Santos, haviam encantado definitivamente o mundo, ensinando uma coisa bem diferente. O seu jogo era pura ginga, malícia. Tinha magia, alegria. E presenteava as plateias com um monte de gols. E que gols! Mas o que eles também faziam questão de deixar no ar, era uma outra grande lição. A da força de uma até então desconhecida, mas poderosa mistura de raças.
No entanto, nada daquilo que estava acontecendo ali, em plena Suécia, era sem razão. Ainda mais porque o Brasil passava por um tempo de mudanças, vivendo um justificado clima de euforia. É que aqueles eram os Anos JK, do Presidente Juscelino Kubitschek e o seu revolucionário Plano de Metas. O do famoso slogan, “50 anos em 5!”
Para culminar, ainda era um tempo em que vivíamos do encanto, com a sonoridade sem igual da Bossa Nova. O movimento que celebrizou internacionalmente a música de Tom Jobim – eternizando, de quebra, a batida diferente do violão de João Gilberto. E que tal lembrarmos que, na mesma época, surgia a inquietante geração do Cinema Novo, com personagens com o brilho de um Nelson Pereira dos Santos , um Glauber Rocha, um Joaquim Pedro de Andrade, um Cacá Dieguez ?
Sorte que tudo aquilo tenha chegado também ao futebol. Campeão do mundo finalmente, na grande vitória do homem brasileiro.