12/05/2023
Em Conectas
Os 100 primeiros dias do governo Lula podem ser analisados à luz dos contrastes com os constantes ataques aos direitos humanos e à democracia vivenciados nos anos da gestão Jair Bolsonaro. O início do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva registrou, no dia 8 de janeiro, o maior ataque deferido à democracia desde o fim da ditadura. Isso realça a necessidade para que, nos próximos meses, siga a retomada de políticas públicas de direitos humanos e de espaços de participação social, bem como sejam adotadas medidas para revigorar a democracia e fortalecer instituições democráticas.
A reconstrução é desafiadora na medida em que a gestão Bolsonaro promoveu uma política sistemática anti-direitos ao enfraquecer os órgãos caros aos direitos humanos e socioambientais como Fundação Palmares, FUNAI e IBAMA, seja nomeando a cargos-chave pessoas que atuavam contra o próprio mandato das entidades e/ou enfraquecendo-as em suas capacidades orçamentárias e de fiscalização. O novo governo, por sua vez, instituiu novos ministérios como o da Igualdade Racial, Direitos Humanos e Povos Indígenas, indicando uma preocupação com o combate às desigualdades.
Uma marca inconstitucional do governo Bolsonaro foi a edição de portarias e decretos para desvirtuar o marco legal existente. Isso aconteceu na agenda ambiental, de controle de armas e de migração, entre outras. Houve também uma atuação contundente do governo Bolsonaro para tentar alterar no Congresso Nacional leis que são vistas como referência mundial na agenda de proteção a minorias ou para adotar novas leis para criminalizar movimentos sociais. Nesse sentido, foram fundamentais as revogações de normativas infralegais já promovidas nesses 100 dias e é preciso que o governo Lula esteja cada vez mais engajado em evitar que matérias legislativas contrárias aos direitos humanos prosperem no Congresso Nacional.
Nesses 100 dias também foram observados esforços para que o Brasil resgatasse seu prestígio externo, em contraste com a posição de “pária internacional” à qual fomos relegados nos últimos anos. Uma das primeiras ações da nova política externa foi a retomada do protagonismo nos debates sobre mudanças climáticas, o retorno do Brasil ao Pacto Global de Migração e a saída do Consenso de Genebra, uma articulação internacional com países mais conservadores do mundo e refratários aos direitos sexuais e reprodutivos.
Políticas e falas racistas e em afronta a direitos de minorias que tanto marcaram a gestão anterior foram substituídas por ações relevantes em diversos campos desde o início da nova gestão. Nos próximos meses, é crucial que sejam adotadas novas medidas concretas para seguir a reconstrução das políticas de direitos humanos e o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Isso inclui, entre outros, o combate à desinformação, a defesa do espaço de atuação da sociedade civil frente a tentativas de criminalização do movimento social, a demarcação de terras indígenas e desintrusão de invasores naquelas já demarcadas, ações para uma transição energética justa e que não repita erros do passado com relação a comunidades atingidas pelos empreendimentos, a implementação de um plano de defesa de vidas negras, a adoção de políticas de combate ao encarceramento em massa e à tortura e o fortalecimento de ações afirmativas raciais tanto no ensino como no serviço público.
A Conectas lista algumas ações que merecem ser destacadas no período dos 100 primeiros dias do atual governo. Acompanhe:
Direito dos povos indígenas
Além da criação do Ministério dos Povos Indígenas, sob o comando da ministra Sônia Guajajara, o governo recriou o Conselho Nacional de Política Indigenista e reestruturou a Funai (rebatizada como Fundação Nacional dos Povos Indígenas) — sob o comando de Joenia Wapichana, primeira mulher indígena a presidir a instituição. As ações reforçam a estratégia de valorizar as áreas ocupadas por povos tradicionais como forma de proteger a biodiversidade e amenizar a crise climática.
A declaração de emergência em saúde pública na Terra Indígena Yanomami (TIY), morada dos povos Yanomami e Ye’kwana, também mostrou a boa disposição da nova gestão. Como resposta à crise, organizou-se uma ação interministerial, além da revogação do decreto do ex-presidente Jair Bolsonaro que criava o programa “Pró-Mape”, de incentivo à “mineração artesanal”.
Ainda assim, em reunião com representantes yanomami, no começo de março, Lula foi cobrado a aumentar os esforços para conter a crise. “Precisamos chegar às comunidades onde estão os parentes doentes e tomando água contaminada”, alertou o líder Davi Kopenawa. “Eu preciso ir lá, mas não posso agora, porque garimpeiros estão lá, escondidos, esperando para acabar com a minha vida”.
Clima e meio ambiente
Uma série de decretos relacionados à política ambiental foi editada logo no primeiro dia do governo Lula. Entre as medidas está o restabelecimento do Fundo Amazônia, que deve destravar R$ 3,3 bilhões, além de novos repasses que devem chegar a mais de R$ 5 bilhões, de acordo com o governador do Pará, Hélder Barbalho. Outro órgão reestruturado foi o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), que havia sido extinto no governo Bolsonaro. Além disso, através de um convênio firmado entre o BNDES e o MapBiomas, o governo anunciou que vai bloquear o financiamento de produtores rurais que realizarem desmatamentos ilegais.
Outro destaque do primeiro trimestre do governo foi a nova estrutura dos ministérios, que aposta na transversalização das agendas de meio ambiente e clima. A sociedade civil precisa acompanhar com atenção essa nova estrutura para entender se está funcionando de forma efetiva, inclusive se as áreas estão recebendo orçamento adequado para realizar suas atividades.
Setores da sociedade civil alertam ainda para a necessidade de realizar uma transição energética justa, inclusiva e democrática. Nessa área, ambientalistas criticaram o possível financiamento do BNDES à construção do gasoduto Nestor Kirchner, na Argentina, que está no foco de conflito com indígenas mapuche.
Segurança Pública
Entre as primeiras medidas do governo, destacou-se o início de reestruturação da política de controle de armas no país. Em decreto, o presidente Lula restringiu o acesso às armas e munições, suspendeu o registro de novas armas de uso restrito e as autorizações de novos clubes de tiro.
Em março, o governo relançou o Novo Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), cujos eixos centrais são: prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher; fomento às políticas de segurança pública com cidadania (com foco em territórios mais vulneráveis e com altos indicadores de violência); fomento às políticas de cidadania, focado no trabalho e ensino formal e profissionalizante para presos e egressos; apoio às vítimas da criminalidade; e combate ao racismo estrutural e a todos os crimes dele derivados.
Por estar alinhado com o Plano Nacional de Segurança Pública, que foi criado ainda na gestão Bolsonaro, acompanhar de perto a implementação do Pronasci será essencial para garantir a inclusão de questões importantes que foram ignoradas, como o encarceramento em massa, a prevenção e combate à tortura, letalidade policial e desaparecimento forçado de pessoas.
Fortalecimento da democracia
Em seu primeiro discurso como presidente empossado, Lula reforçou o fortalecimento da democracia como um dos pilares principais do novo governo. Assim, entre suas primeiras medidas, o presidente revogou o Decreto 9.759, restituindo a participação da sociedade civil no campo democrático. A normativa diminuía de 700 para menos de 50 o número de conselhos previstos pela Política Nacional de Participação Social (PNPS) e pelo Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), programas criados pelo governo Dilma Rousseff, que também foram extintos. O decreto foi assinado pelo então presidente Bolsonaro para marcar os primeiros cem dias de seu governo, em 2019.
Combate ao racismo
No dia 21 de março, quando se comemoraram os 20 anos do início das políticas públicas voltadas para a igualdade racial, o presidente Lula anunciou, ao lado da ministra da Igualdade Racial Anielle Franco, um pacote de medidas com ações para diminuir a desigualdade racial, valorizar os povos quilombolas e reduzir a violência contra a juventude negra. Entre as medidas, o governo deu títulos de terra a três comunidades quilombolas: Brejo dos Crioulos, em Minas Gerais, e Lagoa dos Campinhos e Serra da Guia, em Sergipe, além de anunciar a criação do Programa Aquilomba Brasil, para atuar na promoção dos direitos da população quilombola.
Também foram anunciadas a reformulação e implementação do Plano Juventude Negra Viva, a institucionalização do Grupo de Trabalho Interministerial do Cais do Valongo e a criação do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo Religioso, além de um acordo de cooperação técnica para reparação histórica em favor de religiões de matriz africana. Criou-se ainda o Programa Nacional de Ações Afirmativas, um grupo de trabalho interministerial cujo objetivo é estruturar o acesso de pessoas negras, indígenas, com deficiência e mulheres a áreas como educação, justiça, saúde e trabalho.
Política de migração
Em 23 de janeiro, o Ministro Flávio Dino publicou a Portaria 290/2023, que instituiu um Grupo de Trabalho para a criação da Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia. Houve participação de migrantes e da sociedade civil no Grupo, inclusive da Conectas, que compôs o eixo de Proteção e Promoção dos Direitos Humanos, Combate ao Racismo e Xenofobia. Os trabalhos do GT foram encerrados no final de março e há previsão de que sejam realizadas Audiências e Consultas Públicas para debater o texto preliminar da Política nos próximos meses. Há muito tempo, especialmente desde 2017, as organizações cobram pela criação da Política, já que está prevista no artigo 120 da Lei de Migração e, desta forma, a iniciativa foi considerada um avanço.
Foi anunciado ainda o lançamento do Programa de Atenção e Aceleração de Políticas de Refúgio para Pessoas Afrodescendentes e do Observatório da Violência Contra Refugiados Moïse Kabagambe. O Brasil também anunciou o seu retorno ao Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular (GCM, na sigla em inglês).
“Para a OIM (Agência da ONU para as Migrações), o retorno do Brasil ao GCM representa ainda um passo importante na continuidade de sua política acolhedora que beneficia cerca de 1,6 milhão de pessoas migrantes que escolheram o Brasil para viver, beneficiando também as comunidades de acolhida”, reforçou a OIM, em um comunicado de felicitações.
Combate ao trabalho análogo ao escravo
Ações do governo atual já buscam lidar com a precarização crescente do trabalho e a persistente prática de trabalho análogo ao escravo. Já em janeiro, o presidente Lula anunciou a criação de um grupo de trabalho responsável por eliminar as assimetrias nas relações entre empregados e empregadores. A ideia é que as medidas elaboradas sejam enviadas para debate no Congresso Nacional. A ação se alinha à promessa de campanha de criar uma nova legislação trabalhista, com “especial atenção” a trabalhadores “mediados por aplicativos e plataformas”.
Mas muitas demandas como esta terão que ser adotadas para amenizar o retrocesso causado pelo governo de Jair Bolsonaro, o qual, em seu primeiro dia de mandato, em 2019, extinguiu o Ministério do Trabalho, que passou a ser uma secretaria subordinada ao Ministério da Economia, restituindo-o em 2021. Junto disso, os mecanismos de participação da sociedade civil, bem como as estruturas de fiscalização, foram continuamente sucateadas.
Como aponta relatório da Conectas, OECD Watch e FIDH (International Federation of Human Rights), nos últimos anos a flexibilização de leis trabalhistas no país causou a precarização de muitos trabalhadores. Entre os principais problemas listados pelo documento estão o déficit orçamentário e de pessoal da fiscalização trabalhista. Após o caso de trabalho análogo ao escravo nas vinícolas gaúchas, o governo anunciou que pretende realizar a revisão do II Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e, possivelmente, lançar um terceiro plano, com novas propostas de políticas públicas para combater esta prática.
Políticas de gênero
Em janeiro, o governo federal anunciou a retirada do Brasil da Declaração do Consenso de Genebra, acordo que representa uma posição contrária ao aborto legal e favorável ao reconhecimento de uma concepção ultraconservadora de família como base da sociedade. Com a adesão formalizada em 2020, durante o governo Bolsonaro, o Brasil havia assumido um papel de liderança no grupo.
Ainda em janeiro, o Ministério da Saúde revogou seis portarias assinadas pelo governo anterior que, de acordo com a pasta, contrariavam diretrizes do SUS (Sistema Único de Saúde). Entre as portarias revogadas, está a que previa a necessidade da equipe médica notificar a autoridade policial em caso de aborto por estupro (Portaria nº 2.561).
Publicada em setembro de 2020, essa portaria dificultava a realização do aborto em casos previstos em lei. O texto tornava o processo mais burocrático e penoso, determinando quatro novas etapas para o procedimento, como a necessidade de elaboração de um parecer técnico com a assinatura de três integrantes da equipe médica e a subscrição da vítima em termos de responsabilidade e consentimento. A portaria também determinava que os médicos informassem a vítima sobre a possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, evidenciando as tentativas de constrangê-la pela realização do procedimento.
Postura internacional
A diplomacia brasileira também voltou a ter uma visão de respeito aos direitos humanos no Conselho da ONU que trata sobre o tema. Em março, o Brasil rejeitou recomendações realizadas por outros estados-membros no 4º ciclo da Revisão Periódica Universal, ocorrido em novembro, que limitam a definição de família e discriminam pessoas LGBTQIA+. O embaixador do Brasil nas Nações Unidas, Tovar da Silva Nunes, afirmou que tais recomendações adotavam uma interpretação estreita de família, em conflito com a legislação brasileira e com decisões do Judiciário. “As políticas públicas nacionais do Brasil são dirigidas a todas as formas de família, sem qualquer tipo de discriminação”, explicou o embaixador.
Antes disso, em fevereiro, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, afirmou, também no Conselho de Direitos Humanos da ONU, que o governo brasileiro está “profundamente comprometido” com tratados internacionais e com a Revisão Periódica Universal, mecanismo das Nações Unidas que avalia as políticas de direitos humanos dos países.